domingo, 31 de outubro de 2010

Capítulo 13

São Paulo, Morumbi

– Sinistro – Doca arregalou os olhos – elas são quase iguais!

– Me empresta um pouco a sua pedra. – João pediu.

Sem receio, Doca entregou. João caminhou até a mesa e as movimentou, até que elas pareceram se encaixar.

– Parecem peças de um quebra cabeça.

– E são. Olhe – João apontou para as pedras – falta uma peça para completar a figura.

– E com quem deve estar?
– Algo me diz que em Porto Alegre.

– Por que em Porto Alegre?

– Teoricamente, é o local onde mora a família de um tio meu.

– Você já viu ele com a pedra?

– Eu não o conheço.

– E por que você acha que está com ele?

– Porque a primeira está com você.
– Não entendi.

– Espere um pouco. – João foi até um armário e abriu uma gaveta, de onde tirou um envelope. – Você sabe ler?

– Claro que sei. – Doca respondeu ofendido. – Estou na quarta série, mermão.
– Desculpe. Minha mãe, antes de morrer, contratou uma agência de detetives para procurar seus irmãos. Um deles era ilegítimo, e morava no Rio de Janeiro.

– E aí? Ainda não entendi aonde eu entro?

– Ele se chamava Josias. Como o seu pai.
– Você acha que somos parentes?
– Primos. Mas preciso confirmar.

– Nós vamos fazer aquele exame que falam na TV?

– DNA? Não. Mas eu vou continuar com o meu plano, quando encontrei você na estrada, estava indo para o Rio de Janeiro, mais especificamente, no orfanato em que ele ficou.

– Irado. E o que vai acontecer se eu não for seu primo? Você vai me correr?
– Não, não vou. – afirmou, com convicção.


João limpou a sujeira que Doca havia feito. Ajeitou a cama para o menino dormir e repensou seus planos.

Na manhã seguinte, João reservou para a próxima semana passagens de ida e volta para o Rio de Janeiro. Iria esperar Doca melhorar, já que ele não podia ficar sozinho. Foram dias diferentes na vida de João. Foi ao cinema, comeu hambúrguer e ouviu histórias sobre o morro Porto Seco.
– Você não tinha medo?

– Quando a minha mãe estava viva, não. Bagão nunca havia se metido comigo, pois sabia que se tocasse em mim, ela abriria a boca. – Diante do olhar curioso de João, Doca explicou. – Meu pai contou todos os podres do Bagão para a minha mãe, como garantia de proteção. Ele era o único que sabia que o cara era um baita de um veado. Mas para chefão do tráfico, não caia bem.

– Mas quando sua mãe morreu...

– Ele achou que poderia se aproveitar de mim. Sua grande vingança. Mas ele se ferrou, pois agora ele não pega mais ninguém, nem homem ou mulher.
– Vou me lembrar disso.

– Não sou violento. Foi pra me defender.

– Não estou condenando, Doca. Muito pelo contrário – e abraçando o menino pela primeira vez – tenho orgulho de você. Mas agora esqueça essa história. Quero que você me dê o nome da sua escola. Vou pegar os papéis para você estudar aqui em São Paulo.

– Eu vou ficar aqui?

– Vai. Nunca mais você vai ter que se defender dos Bagãos da vida. - João não sabia a razão de estar fazendo aquela promessa. Talvez fosse a pedra, ou uma estranha certeza de que Doca era seu primo, ou quem sabe o simples desejo de não querer ficar sozinho.

– Gostou do nosso domingo?

– Muito legal aquele parque, João – olhou para o braço – quando eu estiver totalmente recuperado, quero voltar lá.

– Combinado. Agora tenho algo sério pra dizer.

– O que eu fiz?

– Você não fez nada. É que amanhã estou indo para o Rio de Janeiro. Vou pegar um avião cedo e a noite estou de volta.

– Vai ver se meu pai era o seu tio mesmo?
– Sim, e vou buscar os papéis para a tua transferência, assim podemos te matricular em uma escola aqui em São Paulo.

– E se eu não for seu primo?
– Você é.

– Como você sabe?

– Não sei. Mas isso não importa agora. Quero que você preste atenção: como você viu, ontem compramos várias besteiras no mercado, não é para você comer tudo.

– Sim, senhor.

– Vou deixar marcado na portaria para trazerem o seu café, almoço e lanche. E vou pedir para a Teresa trazer. Então, você só pode abrir a porta para a Teresa, certo?

– Certo.

– Então, não abra a porta para nenhum estranho. Nem saia do quarto. Combinado?

– Combinado.


O sol não havia nascido quando João levantou. Tomou um rápido café, pegou uma pequena bolsa e observou se Doca ainda dormia. O táxi o esperava na frente do Flat e João chegou exatamente uma hora antes do vôo no aeroporto.

Fazia anos que não ia ao Rio de Janeiro, a visão pela pequena janela despertou o desejo de tomar um banho de mar. Mas não tinha tempo pra isso. Pela primeira vez em sua vida, tinha alguém que dependia e esperava por ele.

Ouviu as histórias do taxista com impaciência. Nem o calçadão de Copacapana, ou a visão ao longe do Pão de Açúcar, atraiam a sua atenção. Ao identificar o local que buscava, sentiu a adrenalina correr pelo seu corpo. Parte da sua história estava ali. Pagou o motorista e se dirigiu rapidamente ao portão de entrada. Quando passou pela porta do orfanato, escutou o grito das crianças e viu uma irmã carmelita brincando com elas. Chegou até a recepção, onde uma senhora o atendeu.

– Bom dia. No que posso ajuda-lo?

– Bom dia. Estou procurando informações sobre um homem que passou parte da infância aqui. Seu nome é Josias.

– Josias do que?

– Apenas Josias. Ele não tinha registro nem sobrenome.
– Temos dois Josias aqui, qual a idade dele?

– Ele não está aqui. Inclusive já morreu.

– O senhor é louco?

– Não. Estou procurando informações sobre um tio meu. Seu nome era Josias e morou aqui durante um tempo.

– É complicado ajudar só com essas informações.
– Ele se tornou traficante no morro do Porto Seco.
– Você está falando do Josias traficante?
– Sim.

– Então você é jornalista?

– Não. Acho que sou sobrinho dele.

– Como assim, acha que é sobrinho dele? Josias não tinha ninguém, nem sobrenome.
– Vocês não sabem o nome da mãe dele?

– Não. O passado de Josias é desconhecido. Mas você é realmente parente dele?

– Conforme uma investigação de uma agência particular, tudo indica que sim.

– Bom, tanta gente já olhou a ficha dele, que mais um ou menos um não vai fazer diferença. Sabe, ele já havia sido esquecido por aqui, eu mesma, nem sabia da existência dele. Até matarem ele, dez anos atrás. Alguém disse que ele havia sido criado aqui e tudo o que é jornalista resolveu pesquisar a vida desse “ilustre desconhecido”.

A mulher foi até um armário e retirou uma pasta de papelão, num azul desbotado. Comum gesto, pediu que João a seguisse. Entraram em uma sala com duas mesas de madeira, cada uma com quatro cadeiras.

– Pode sentar em qualquer uma delas e olhar a vontade. – Disse enquanto entregava a pasta para João - Uma das irmãs colocou os recordes das notícias que saíram sobre o Josias. Quando terminar, basta me entregar ali no balcão. Ah, e não esqueça de colocar o seu nome completo na folha que está grudada na capa, é para o nosso controle.

João concordou com a cabeça, quando a mulher virou as costas, começou a manusear os documentos. Josias foi levado ao orfanato aos oito anos, por uma mulher que vivia no morro da Mangueira. Conforme essa mulher, uma vizinha havia lhe dado à criança ha dois anos atrás, quando estava morrendo. Não sabia o nome da mãe, apenas que a sua forma de falar não era carioca, e pelas roupas, era uma mulher da vida.

Josias viveu no orfanato até os dez anos, quando fugiu. Conforme os recortes de jornal, desde essa época ele vivia no Porto Seco. Menino revoltado, conquistou a confiança de um dos maiores ladrões da época. O aprendiz se tornou mestre, conseqüentemente chefe do morro, e inevitavelmente, do tráfico de drogas. Morreu tarde, para os padrões da bandidagem. Alguns apontavam Bagão como autor, outros diziam ser um traficante do morro vizinho.

Nenhuma notícia sobre a mãe. Seria ele realmente filho de Irina? Continuou a mexer nos papéis e encontrou um envelope, abriu e encontrou uma pequena carta:


“Meu menino
Sei que nunca irá me perdoar. Eu também não. Lhe desejo sorte.”

João olhou para os lados, ninguém o observava. Disfarçadamente, o guardou no bolso interno do casaco. Não encontrou mais nenhum papel interessante. Guardou tudo na pasta e começou a escrever o nome na folha de controle. Havia uns quinze nomes, alguns, de jornalistas que hoje eram famosos. Mas foi o primeiro nome que lhe chamou a atenção: Odete Eztufp, data da visita: 04 de junho de 1968.

domingo, 24 de outubro de 2010

Capítulo Doze

Curitiba, Cristo Rei

– Como? – perguntou Lúcia, com o sorriso sumindo de seus lábios.

– Você não é a amiga das meninas do 1004?

– Sou.

– Eu sou Odete, do 1303. – disse estendendo a mão enrugada – As meninas costumam ir lá no meu apartamento aos domingos, para tomar um chá. E me falaram muito de você.

– Prazer dona Odete. – disse apertando a mão da doce senhora. – Sou Lúcia sim. Desculpe, como sou nova ando meio assustada.

– Não precisa se desculpar – a senhora balançou a cabeça – e pode me chamar de Odete. O seu jeito assustado me lembra uma antiga colega de trabalho – sorriu – onde você está indo?

– Na padaria.

Odete deu uma pequena gargalhada. Nesse momento o elevador parou no térreo.

– Que pão você vai comprar?

– Cacetinho – Lúcia estranhou a pergunta.

– As meninas resolveram que você ia passar vergonha como elas, então. – a senhora sorriu outra vez – eu também estou indo comprar pão. Aqui é panificadora que chamam, e não padaria. E você vai comprar pão francês e não cacetinho.

– Pão francês? Lúcia arqueou as sobrancelhas.
– Sim. Se você pedir cacetinho a moça irá olhar para a sua cara sem entender. Vamos lá, enquanto caminhamos, lhe explico algumas diferenças lingüísticas.
– A senh...Odete – Lúcia se corrigiu ao perceber o olhar da sua vizinha – tu estás acostumada com os gaúchos?

– Sim. Morei um tempo lá, antes de vir pra cá. Mas não se assuste, Curitiba é uma cidade muito boa de morar – Odete abriu o portão que dava acesso à rua – Vamos?


No domingo, Lúcia acompanhou suas amigas até o apartamento de Odete para o famoso chá. As meninas contaram tudo o que fizeram durante a semana, fizeram Lúcia relatar as suas últimas semanas em Porto Alegre e a viagem. E depois ouviram Odete contar as suas histórias, de quanto era vendedora, manicure e prostituta. Sem nenhuma vergonha, ela revelava episódio com clientes e situações constrangedoras. Ao anoitecer, retornaram para o apartamento com a boca doendo de tanto rir.


Na manhã seguinte, Clarissa acompanhava as outras duas se arrumarem. Sempre foi muito ágil, e ainda não havia ajustado um horário para acordar sem atrapalhar e nem ficar esperando muito por Soraya.

Lúcia também era demorada, e ainda não havia calçado os sapatos. Olhando no relógio, Clarissa percebeu que faltavam quinze minutos para o ônibus da empresa passar. E ela não podia se atrasar. Chegando lá, teria que organizar sua pasta para depois ir até a Ópera de Arame, local onde iriam montar a festa de aniversário da Ambiental.

– Com que sapato você vai, Lúcia?

– Você?! Já virou paranaense, Clarissa? – brincou Lúcia.

– Essa ai mudou de sotaque rapidinho. – disse Soraya, terminando de engolir o café.

– Trabalho na área de relações públicas. Não posso vir para o Paraná e tratar todos por “Tu” se eles usam “Você” – respondeu furiosa – e diga logo o sapato que TU irás usar Lúcia, pois temos menos de quinze minutos.

– Me traga o preto, já que você vai buscar.

Clarissa foi até o quarto de Lúcia caminhando furiosamente. Abriu a porta do guarda-roupa e pegou o sapato na prateleira mais baixa. Quando fechou a porta, seus olhos foram atraídos pela pedra em cima da penteadeira. Olhando as tonalidades que ela refletia em contato com a luz, Clarissa, sem pensar, pegou a pedra triangular e colocou em seu bolso. Lúcia não iria notar, à noite ela colocaria no lugar. E se a pedra desse o efeito que ela imaginava, iria pedir para Lúcia emprestar, afinal, era um evento para a empresa que todas faziam parte.

No ônibus, enquanto Soraya apresentava Lúcia aos demais colegas. Clarissa imaginava o efeito que a pedra faria como enfeite na mesa da presidência. Apesar de terem contratado uma empresa de decoração, ela tinha certeza que sua pró-atividade iria render muitos pontos.
Quanto o ônibus chegou na empresa, elas se separaram. Soraya levou Lúcia até o seu novo setor, onde seriam colegas e Clarissa correu para suas atividades.


– Você vai estranhar um pouco – começou Soraya – o pessoal aqui é um pouco mais fechado, mas depois que se acostumam contigo, são todos muito legais. – Abriu uma porta onde dizia Recursos Humanos. – Venha, a sala das psicólogas é por aqui.

Entraram em um local muito arrumado, com arranjos de flores e mesas organizadas. Um perfume indicava que, definitivamente, aquele era um local feminino.

– Bom dia Heloísa. – disse Soraya – trouxe a nossa nova colega.
– Seja bem-vinda, Lúcia – Heloísa se aproximou e deu dois beijos nas faces de Lúcia – Adriana me falou muito bem de você. Estamos com muitas expectativas em relação ao seu projeto.

– Eu também. – Sorriu Lúcia. – E muito ansiosa para coloca-lo em prática.

– Mas antes, você deve conhecer a nossa empresa. E as pessoas com quem você irá trabalhar. Soraya mostre a mesa de Lúcia e depois faça um pequeno tour. Na próxima segunda, você irá participar da integração, onde assistirá um curso que conta à história da organização, seus processos, enfim, o que a faz funcionar. – Explicou Heloísa. –Mas esse pequeno passeio com Soraya podem lhe dar uma visão de onde o seu projeto irá funcionar.

– Venha Lúcia. – chamou Soraya – sua mesa fica aqui no canto, perto da janela.

Despediram-se com um sorriso. Lúcia ficou impressionada com o espaço que lhe foi destinado.
– Todos têm duas mesas. Essa primeira aqui é a pessoal, você pode colocar fotos, bugigangas, enfim, qualquer coisa, a outra é para fazermos reuniões em par. Embaixo da sua mesa pessoal tem um pequeno armário com gavetas, coloque a sua bolsa na maior e vamos caminhar.


Clarissa olhou para o relógio quando o carro parou, dez horas, haviam chegado cravados por causa do seu colega Jorge.

– Bom dia, pessoal – disse Marcelo, responsável pela empresa de decoração – Tem um grupo de turistas dentro do teatro e vamos ter que aguardar um pouco, mas vamos caminhando.
Clarissa observou o lugar, o teatro era todo em ferro e vidro, cercado por árvores, havia também um lago com cisnes nadando. Uma ponte, com um piso de grade, dava acesso ao local, e ela lamentou ter vindo com um sapato de salto fino. Lembrou de Júnior comentado que a Ópera parecia uma aranha gigante saindo da floresta para atacar os habitantes da cidade. Mas para ela, era a perfeita harmonia da arquitetura com a natureza.

– Você já conhecia a Ópera, Clarissa? – perguntou seu colega

– Não. Mas é linda!

– Você não viu nada. A noite, iluminada, é maravilhosa. Aposto que vocês não tem nada parecido em Porto Alegre.
– Não precisamos de luzes para tornar nossos locais maravilhosos, meu caro Jorge – com um olhar raivoso, completou – o pôr-do-sol do Guaíba faz toda a cidade ser maravilhosa.
– Bairrista. – Jorge riu. – Enquanto você tenta caminhar na ponte, eu vou lá na frente com o Marcelo ver o que está acontecendo.

Clarissa viu Jorge chegar com largas passadas na porta de entrada do teatro, enquanto ela estava no início da ponte, tentando caminhar e se equilibrar. Um gato avermelhado passou se encostando a suas pernas, fazendo com que tropeçasse.
– Ai. – gritou, ao sentir uma mão lhe segurar.

– Cuidado. – disse um homem de cabelos compridos, muito lisos, e pele morena – Você não deveria carregar fardos que não são seus.

Clarissa não conseguiu nem agradecer, o homem já havia lhe virado as costas e se afastado. Com a respiração suspensa e os olhos arregalados, pronunciou em voz alta:

- Fardos? Que fardo estou carregando? E de quem? – Mas ninguém lhe respondeu.

Estava no meio da ponte quando Jorge chegou.

– Vamos ter que esperar mais um pouco, no máximo cinco minutos, e o pessoal sai de lá. Ai o teatro é só nosso. – Olhando para o lago completou – Enquanto isso, podemos olhar os habitantes da água, tem peixes, tartarugas...hei, olhe aquele cisne.
Clarissa olhou para a água marrom. Cansada de tentar caminhar na ponte observou os desenhos da grade de proteção, uma mistura de arcos e triângulos que se interligavam, sem mais pensar, utilizou os braços para impulsionar o corpo e se sentou nela. Enrolou os pés em uma das pernas do triângulo e ficou observando o público. Olhando para a frente, lembrou a frase do homem que havia lhe apoiado e imediatamente, a pedra de Lúcia veio-lhe a mente. Instintivamente, abriu a bolsa e a pegou.

Quando a encontraram na barraca de artigos místicos da Redenção, ela não havia lhe chamado a atenção. Renata que havia incomodado a todas, afirmando que Lúcia iria se apaixonar pela pedra. Agora, ela lhe distraía, atraindo o seu olhar para os reflexos que a luz do sol provocavam naquele objeto.

Nesse momento, um grupo de jovens saiu correndo do teatro. O primeiro do grupo, olhou para trás, verificando sua vantagem em relação aos outros quando se desequilibrou. Ao tentar se apoiar na grade, que também servia de corrimão, empurrou Clarissa.

domingo, 17 de outubro de 2010

Capítulo Onze

Belo Horizonte, Cidade Jardim

– Meu Deus – exclamou Antônio – a mulher era realmente má.

– Madame Elvira? Você ainda não viu nada. – espreguiçou-se Vivian – Amanhã vamos remover os armários na cozinha. – disse desligando o notebook.

– Na cozinha? Mas porque Vivian?

– Quero descobrir que maldição à velha bruxa jogou na minha mãe para ela morrer daquele jeito.

– Você é quem sabe. Aonde iremos dormir?

– Na casa dos empregados.

– Você está brincando? Com a quantidade de quartos confortáveis que tem nessa casa?

– Você quer descobrir a razão de ninguém morar aqui?

– Você acha que ela jogou alguma praga?

– Depois do que acabamos de ler, você tem coragem de dormir aqui?

– Pensando por esse prisma... não.

Vivian riu. Toda vez que Antônio começava a falar difícil era porque as suas pernas tremiam. Desligou todas as luzes, deixando apenas as da rua acessa. Ao abrir a porta da casa dos empregados, velhas lembranças tomaram conta do seu coração. Caminhou até a cozinha e encostada em uma das mesas, colocou os braços em sua volta. “Mãe que falta você me faz.”

– Onde fica o banheiro? – gritou Antônio.

– Você está na sala? – respondeu enquanto enxugava as lágrimas.

– Sim.

– Está vendo o corredor?

– Estou.

– Primeira porta a direita.


Seguiu em direção a sala, passou a mão pelas paredes, com um suspiro, caminhou em direção ao corredor e se dirigiu a última porta. Ao abrir, estava tudo lá. Sentiu-se com dez anos, fugindo do banho enquanto a mãe ainda atendia os patrões.

– Onde irei dormir?

– No quarto do Miguel.

– Miguel?

– O antigo motorista da família.

– Vocês moravam com um homem aqui dentro?

– Miguel tinha mais de sessenta anos e era um senhor adorável. Doutor Adriano tinha pena dele. Só o chamava para trajetos curtos. Morreu um ano depois de seu Carlos e Madame Elvira.
– Ele não chegou a se mudar então.

– Não. – fazendo um leve gesto de negação com a cabeça, para afastar os pensamentos, Vivian mudou de assunto – Pegue as nossas malas no carro, por favor? Na preta estão lençóis e toalhas limpas. Assim podemos tomar um banho e arrumar nossas camas.


Vivian tomou um banho quente e demorado, por um momento imaginou a mãe lhe esperando, para trançar os longos cabelos. Mas nem a sua mãe, nem os cabelos estavam mais lá. Colocou a longa camisola e um roupão felpudo. Quando saiu do banheiro, sentiu um cheiro gostoso vindo da cozinha. Sorriu, antecipando o prazer de uma refeição feita por Antônio, que era um excelente cozinheiro.

Foram dormir cedo. Ambos estavam cansados da movimentação. Após se aconchegar nas cobertas, Vivian sentiu o cheiro de sua mãe, fechou os olhos e dormiu com ela em seus pensamentos.

Um barulho forte ecoava da casa. Vivian sentiu que braços quentes a protegiam. O que estava acontecendo? Notou que seus pés estavam sem as meias e sua camisola não era mais tão longa e quente. Abriu os olhos e encontrou os de sua mãe. Observou o seu rosto, emoldurado pelos cabelos pretos soltos, sua boca estava cerrada e a testa franzida. Vivian olhou para as suas próprias mãos. Tinha cinco anos outra vez.

– Venha. – disse a mãe estendendo a mão – Você precisa ver isso.

Vivian estendeu a mão e foi puxada para fora da cama. Catarina a levou até a janela e se abaixando, puxou de leve as últimas persianas.

– Olhe!

A casa estava toda iluminada, as venezianas das janelas abriam e fechavam, batendo com força nas paredes.

– Não entendo. Eles não estão em casa mamãe! Por que você não fechou as janelas e apagou as luzes – e apontando para a casa – ela está toda iluminada.

– Não está querida. Olhe para a janela do canto esquerdo.

– A janela do quarto de madame Elvira? – Vivian olhou novamente – É a única janela fechada.

– Sim, a janela do quarto que você limpou. É você que irá libertar essa casa, Vivian. Não esqueça disso, nem quando se sentir cansada. Você tem uma missão e não pode abandona-la. – Catarina se levantou e pegou Vivian no colo – Agora, volte para a cama. Você terá um dia agitado amanhã.
Com cuidado, Catarina acomodou Vivian no lado direito da cama e colocou um urso em seu travesseiro. Cantando músicas antigas, mexeu nos cabelos da menina até que essa pegasse no sono. A única coisa que se lembrava é da mãe lhe dizendo que a amava.


A forte luz do sol acordou Vivian, que continuava deitada do lado direito da cama com um urso a lhe fazer companhia. Instintivamente tocou na camisola e notou que era a mesma grande e felpuda. Olhou para as mãos, elas tinham sessenta anos outra vez. E suas meias estavam, em seus pés. Mas a sua mãe também estivera.

Levantou e olhou para a janela, as persianas estavam levantadas. Eram seis e meia da manhã, hora em que sua mãe deixava o sol entrar para ela acordar e ir ao colégio.

– Não se preocupe, mãe. Não esqueci da minha missão.

Vivian sabia que tinha que ser rápida. Não tinha muito tempo para encontrar os herdeiros da maldição. Mas hoje ela iria cuidar da casa, começando pela cozinha.


Os armários em madeira escura estavam por toda a cozinha e eram pesados. Vivian e Antônio passaram o dia retirando louças de dentro deles, desmontando armários e atirando o líquido amarelo nas paredes e nada. Só faltava a peça que servia de depósito de alimentos. Não havia nada lá. Apenas a madeira das prateleiras. Antônio começou a mexer, quando notou que, em um dos lados, elas eram mais frouxas. Começou retirar uma a uma, até a parede se mostrar por inteiro.

– Aqui está ela. – disse sem olhar para Vivian.

Sem responder, Vivian atirou o líquido amarelo e as palavras apareceram:

“Skas duzlios le bys a humis D l nuzPas a tulil”

Vivian repetiu o procedimento do dia anterior com mais dificuldade. Suas mãos tremiam ao ver os símbolos que marcaram parte da vida de sua mãe. Demorou o dobro do tempo para decifra-los. Cada significado encontrado era uma punhalada no seu coração.
– Negra Maldita seu corpo irá pagar por suas palavras de traição – Vivian suspirou – isso explica tudo Antônio.

– A cegueira da sua mãe não foi algo natural?

– Não, meu primo. Quando minha mãe avisou madame Cristina que eles deveriam se mudar, seu cabelo branqueou.

– Por isso a tia Catarina não comentou nada quando o doutor Adriano começou a definhar?

– A princípio ela não sabia. Quando nasceu o Jonas, o caçula, ela teve certeza. Mas teve medo. Eu era uma adolescente e ela temia o que podia acontecer com ela. Mas madame Cristina também percebeu e parou de engravidar. Infelizmente, era tarde demais para doutor Adriano.
– Então a perda nos movimentos da mão esquerda de sua mãe foi natural?

– Não. Quando os médicos do doutor Adriano anunciaram sua morte, madame Cristina começou a providenciar o enterro dele em Recife mesmo, uma hora depois dela fazer o acerto com a funerária, Cezar, o primogênito, ficou com quarenta graus de febre. Minha mãe não se agüentou e pediu para madame Cristina enterra-lo em Belo Horizonte, no jazigo comprado por madame Elvira. Mesmo com lágrimas, madame Cristina o fez, depois de tudo acertado, a febre do menino foi embora, mas minha mãe não conseguia mais mexer com a mão esquerda.

– E foi assim que eu acabei nascendo perto de vocês. – Antônio brincou, tentando aliviar a atmosfera pesada.

– Sim. Mamãe não conseguia mais realizar as tarefas domésticas, assim madame a colocou como uma administradora da casa e a encarregou de contratar outra pessoal. Mamãe chamou tia Madalena, que um ano depois se casava com o jardineiro Elias e dois anos depois dava a luz a um menino chamado Antônio. – concluiu com um leve sorriso.

– Esse seu formoso assistente. – Antônio gracejou, sentindo-se satisfeito por desfazer um pouco da tensão de Vivian.

– É verdade. Obrigada, Antônio. Sei que é complicado deixar a família e os negócios pra trás, mas sem você eu não conseguiria.

– Não diga bobagens. Você é minha família também. Além do mais, Miriam pode cuidar da loja.

Encerrados os trabalhos daquele dia. Vivian deitou a cabeça no travesseiro. “Estou muito velha pra isso” suspirou. O sono logo veio, assim como a presença forte e quente de sua mãe.

– Acorde e veja – ela lhe disse.

Novamente a casa estava toda iluminada, com as janelas batendo. Exceto o quarto de madame Elvira e a cozinha.

– Amanhã será mais fácil mamãe. E o trabalho será mais rápido.

– Você não precisa ter cuidado com os bens materiais. Seu tempo é pouco. Várias vidas dependem disso.

Vivian com o olhar fixo na casa, apenas concordou com a cabeça. Apesar do corpo de criança, sua cabeça permanecia com sessenta anos, e o seu conhecimento de vida dizia que nesse ponto sua mãe estava errada. Se quebrasse qualquer coisa antes de libertar todas as peças, daria mais força ao espírito e as maldições de madame Elvira.


Quando amanheceu, Vivian despertou com um sentimento de urgência. Desejou ter os quarenta anos de Antônio, mas agradeceu a Deus poder contar com sua ajuda. Foi até a janela onde se via toda à parte de trás da casa.

“O dia terá que ser definitivamente longo” pensou.

domingo, 10 de outubro de 2010

Capítulo 10

São Paulo, Via Dutra

João não pensou. Simplesmente virou toda a direção para a direita. Ainda teve tempo de ver um par de olhos brilhantes antes de frear com força. Sentiu o corpo ir para frente e ser empurrado de volta ao acento pelo cinto de segurança. “Que merda. Só me faltava isso” pensou , no momento em que um grande caminhão passou buzinando. Mais por reflexo do que por preocupação, olhou para a pista procurando um corpo. Nada. “Estou vendo coisas” resmungou ao notar um corpo estendido no acostamento, a poucos metros do seu próprio carro.

Doca jamais conseguiria explicar o que aconteceu, lembrava-se apenas de que estava pegando a sua camiseta quando viu os faróis em sua direção. Virou a cabeça para a esquerda e viu um gato de olhos verdes. Sem pensar muito, foi em sua direção, sentiu uma pequena batida e agora, quando abria os olhos, via os mesmos faróis e o chão. “Será que eu morri?”

– Puta que pariu. Meu carro! – resmungou um homem alto, de camisa pólo azul, calças sociais, olhando para a lataria do carro esporte.

– Qual é, mermão?! Quem deveria estar falando palavrão sou eu, estendido aqui no chão.
– O que você estava fazendo no meio de uma pista... de uma pista de BR, seu imbecil? – pela primeira vez João olhou realmente em direção a voz. O que viu foi um menino pequeno, sozinho, caído no chão com o braço sangrando.

Quando virou a direção, João acreditava piamente estar se livrando do louco da rodovia e deixando a responsabilidade para o caminhoneiro. Olhou em volta. Não havia nenhum adulto por perto, nem testemunha. Com a velocidade que o caminhão passou, com certeza não havia anotado a sua placa. Por que não seguir viagem e deixar o garoto ali, sozinho?

Doca estava com medo. Suas costas doíam, aliás, tudo doía. Havia raspado um dos braços e batido a cabeça. A bolsa de sua mãe estava aberta com tudo jogado na volta. Sua sacola com roupas estava no meio do mato. Pensou em levantar, mas resolveu esperar o homem que olhava ir embora.

João começou a caminhar lentamente em direção ao garoto. “Não posso ser tão covarde. Pego ele, largo em um hospital público e deixo uma grana para ele pegar um táxi. Tudo resolvido”. Olhou embaixo do pneu para ver se tinha atropelado o gato também, mas não havia nada. Quando levantou a cabeça viu uma conhecida pedra triangular no chão. Instintivamente, voltou até o carro e pegou o seu casaco. A que estava o chão era outra.

“Impossível, é muita coincidência”. Um trovão iluminou o céu e sem pensar, João começou a recolher as coisas do menino.

– Hei, não mexe ai não. – reclamou Doca – Isso é meu e nenhum 171 vai levar.
– Vou levar sim, essas coisas e você até um hospital. – gritou João – Você tem idéia do que fez? Tem?

– Desculpa. Eu me distraí com os aviões.

– Da próxima vez vá até o aeroporto para se distrair com eles e não no meio da Via Dutra. – suspirou – Você consegue se levantar sozinho?

Doca tentou se mexer, mas não conseguiu ter força suficiente.
– Acho que estou com câimbra na perna direita. Não consigo mexer sem sentir dor.

– Tudo bem. Não se mexa. Além dessa bolsa, você tinha mais alguma coisa?

– Uma sacola do Flamengo com as minhas roupas.
João foi até o mato próximo ao acostamento e logo encontrou.

– Essa mochila?

– Sim.

João recolheu tudo e colocou no banco da frente. Levantou o seu banco e abriu bem a porta. Foi até Doca e sem uma palavra, o pegou no colo. Caminhou rapidamente até o carro e o deitou no banco de trás.

– Vamos para um hospital. Procure não se mexer, ok?

– Ok. – respondeu Doca fechando os olhos. O carro tinha um cheiro bom e aquele banco era mais confortável que sua própria cama.

Se fosse honesto, iria admitir que nunca havia tido uma cama de verdade. Sua mãe ia conseguir uma em seu novo emprego. Mas Deus não quis.
– Como você se chama? – João o trouxe para a realidade.

– Hein?!

– Seu nome, qual o seu nome?

– Eduardo. Mas todos me chamam de Doca.

– Muito bem, Doca. Eu me chamo João. – olhando Doca pelo retrovisor perguntou - E os seus pais?

– Não tenho pais. Estou sozinho.

– Você fala chiado. É do Rio?

– Sou.

– E como você chegou até aqui?

– Pegando carona, caminhando...

– Nossa... você deveria estar desesperado!

– Estava.

– Você veio caminhando?

– Quando não conseguia carona...

Doca emudeceu e João resolveu prestar atenção no trânsito. Sem saber a razão resolveu levar o garoto para um hospital no Morumbi. Sabia que ia ficar com ele em sua casa. Nunca havia acreditado em coincidências, mas desta vez, o destino parecia estar lhe pregando uma peça.
Conforme andavam, as ruas se tornavam mais iluminadas, prédios mais altos surgiam. “Estou entrando em outro mundo” pensou Doca, enquanto lia o nome da rua: Avenida Albert Einstein.
João estacionou o carro em um prédio grande, com uma entrada envidraçada.

– Espere um pouco. – disse antes de sair.

Logo depois, João apareceu com um rapaz todo de branco que o retirou com cuidado do carro e o colocou na maca.

– O senhor não deveria ter removido ele da estrada – recriminou o mesmo rapaz – se ele sofreu algum dano mais sério na coluna, isso pode ter sido fatal.

– Como ele estava sentindo câimbra na perna, achei que não havia afetado a coluna. – disse João levantando os ombros.

– O Senhor é médico?

– Não, e você é enfermeiro, não?

Na entrada, Doca descobriu o lugar onde estava: Hospital Albert Einstein. Enquanto lia o letreiro, a maca foi em uma direção e João em outra. “Minhas coisas” foi à última coisa que Doca pensou antes de entrar em uma sala gelada.

– Boa noite, Senhor – sorriu a recepcionista – Enquanto o menino é levado para o raio X, pode preencher essa ficha?

– Sinto muito, mas sei apenas o primeiro nome do menino: Eduardo.

– Mas.. quem vai pagar o atendimento?

– Acredito que isso não seja uma preocupação, quando se trata do filho de Julios Galdos?

– Não, com certeza não, senhor – nervosa a moça guardou a ficha – Vamos esperar o menino sair dos exames para pegar os seus dados.

João saiu e foi sentar na sala de espera. Pelo menos isso o seu pai havia deixado. Atendimento vitalício após polpudas doações. Para seu alívio, pelo menos em um lugar, o seu nome ainda tinha poder.

Uma hora depois, Doca apareceu com o braço esquerdo enfaixado, alguns curativos no rosto e nas pernas. Havia perdido um dos seus chinelos e por isso caminhava puxando uma das pernas.
– Tudo bem? – perguntou para o médico que o trazia.

– Tudo em ordem com o rapazinho aqui. Ele teve uma luxação no braço esquerdo, mas em duas semanas estará pronto para uma nova aventura.

– Menos radical, eu espero. – disse João

– Com certeza, não é Doca?

– Sim, Dr. Luís. – pela primeira vez Doca sorriu – Muito obrigado.

– Nessa sacola – o médico apontou para o pequeno embrulho que Doca carregava com cuidado – estão os remédios que ele deve tomar. Aqui está a receita. – entregou na mão de João para que ele pudesse ver – esses dois primeiros ele deve tomar de oito em oito horas na primeira semana. Na segunda, muda para esse terceiro que é de doze em doze.

– Certo.

Doca prestou a atenção. Sabia que João iria larga-lo na primeira esquina. Mas não se importava. Já estava em São Paulo e agora podia começar a cuidar de sua própria vida.

– Obrigada, Doutor. – João apertou a mão do médico. – Agora tenho que levar esse garoto para o interrogatório da recepcionista.

– Boa sorte e cuide-se, Doca. Não quero ver você aqui tão cedo – piscou – a menos que você sinta dor nesse braço.


Despediram-se do médico e caminharam em silêncio até a recepção. A moça olhou para as roupas de Doca com um misto de pena e nojo, mas não ousou falar nada na presença de João.
– Muito bem. Qual o seu nome completo? – ela começou

– Eduardo Oliveira.

– Nome da sua mãe?
– Jussara Oliveira.

– Do seu pai?

– Josias.

– Oliveira?

– Não. Só Josias.

– Qual o sobrenome do seu pai?

– Ele não tem. – a recepcionista arregalou os olhos – ele não era registrado. – explicou com um olhar resignado.

Josias é morador da favela Porto Seco, no Rio de Janeiro. Sua busca foi extremamente difícil, pois ele não foi registrado. Andou por várias casas, seu último paradeiro antes da favela, foi um orfanato de irmãs carmelitas. Vive sozinho e é traficante de drogas.”

As palavras escritas no relatório da agência de detetives surgiram como um raio na mente de João. Era mais do que coincidência. Como dizia a sua mãe “algo grandioso iria acontecer”.

– Qual a sua idade? – a recepcionista continuava com a sua bateria de perguntas

– 10.

– Onde estão os seus pais?

– Mortos. – Doca respondeu com uma naturalidade que fez a recepcionista pigarrear antes da próxima pergunta.

– E onde você mora?

Doca pensou. Não tinha mais endereço. Mas ela não precisava saber, provavelmente nunca mais se veriam.

– Porto Seco.
– Onde é Porto Seco?

– No Rio de Janeiro.

– E a rua, o número?
– Quadra 12, barraco 15.

– Barraco? – a moça estava cada vez mais surpresa.

– Coloca o meu endereço – disse João – ele vai para a minha casa mesmo.

– Vai?

– Vou? Perguntaram Doca e a recepcionista.

– Vai. Você não pode encerrar isso? Ele já foi atendido, o Doutor Luís já deve ter uma ficha dele. Qualquer coisa, vocês ligam para esse número – estendeu um cartão.

– Certo. – ela respondeu, grampeando o cartão junto à ficha – Vocês estão cansados. Podem ir.

– Eu vou mesmo para a sua casa? Perguntou Doca a caminho do carro.

– Vai. – respondeu João, enquanto procurava a chave no bolso da calça. Apertou um botão e com um barulho, as portas destravaram – Agora você pode sentar. Entre no lado do caroneiro.
Doca correu para o outro lado. Quando abriu a porta, viu João colocar suas coisas no banco traseiro.

– Não esqueça de colocar o cinto. - João ligou o carro, com os olhos no retrovisor, colocou o carro lentamente em movimento.

Doca viu João pegar a carteira e entregar uma nota para o rapaz que liberava a saída dos carros. Ao sair do estacionamento, dobraram a direita. Conforme passavam pelas ruas, era possível observar as pessoas com seus passos apresados, ou esperando em paradas de ônibus. Prédios iluminavam a cidade como se fosse dia.

– É nessa rua. – Avisou João, trazendo Doca de volta a realidade.

Doca começou a procurar o nome, para saber onde se encontrava. Avenida Giovanni Gronchi informava a placa azul. Em frente a um prédio, onde se lia The Residence Flat, João apertou um botão em uma pequena caixa preta e um grande portão se abriu. Chegaram ao sub-solo, onde João estacionou o seu carro.

– Você mora aqui?

– Está impressionado? Se você visse a casa da família então. – sorriu João.

– É porque você não conheceu a casa da minha família.

João o encaminhou até os elevadores e subiram até o décimo terceiro andar. Ao abrir a porta. Doca se deparou com um lugar que misturava luxo e escuridão. Sua mãe sempre dizia que os ricos não sabiam iluminar suas vidas. Doca sempre a contrariava, dizendo que um dia ela seria muito rica e a sua casa, a mais iluminada de todas.

Enquanto Doca tomava banho, João separou uma roupa limpa para o menino e pediu um lanche. Quando entrou na sala, Doca se deparou com um prato de massa e refrigerante. Por um momento, pensou na razão de não sentir medo daquele homem. Mas algo lhe dizia que podia confiar naquele engomado.

– Então, como está?

– Delicioso. – respondeu Doca de boca cheia, observando João comer uma comida esquisita. – Isso é bom?

– Isso é sushi. Outro dia você experimenta. Já viveu aventuras demais para um único dia.

– Onde eu vou dormir?

– O sofá vira uma cama. É nele que você vai dormir.

– Tá bom.

– Não se preocupe. Ele é confortável.

– Não estou nem um pouco preocupado. – Doca deu de ombros. – Imagino que ele dê de dez a zero na minha ex-cama.

– O que a sua mãe fazia?

– Limpava a casa de gente cheia dos contos como você.

– E o seu pai?

– Fazia dois oito um. – respondeu enviando outra garfada de massa na boca.
– Dois oito o que?

– Ele era traficante – terminou de engolir e completou – dos bons, viveu até os cinqüenta, coisa que neguinho nenhum consegue. Mas um língua nervosa acabou com ele.

– Língua nervosa? Sei...

– Um dedo-duro. Depois que mataram o meu pai, ele saiu no pinote, e apareceu morto logo depois.

– Me diz uma coisa Doca. Onde você conseguiu aquela pedra triangular?

– É isso que você quer? – Doca levantou num saldo, derrubando molho no piso. – Ela é minha, você não vai tira-la de mim?

– Calma rapaz. – João disse enquanto se levantava lentamente e pegava a bolsa que Doca carregava. Atirou para ele que pegou e abriu ligeiro, derrubando a bolsa enquanto pegava a pedra com a mão boa. – O que você diria – continuou, enquanto pegava o seu próprio casaco e colocava a mão no bolso – se eu te dissesse que tenho outra parecida? – completou enquanto mostrava a pedra triangular em sua mão.

domingo, 3 de outubro de 2010

Capítulo Nove

Porto Alegre, Centro

Caminhado lentamente, devido ao grande peso de suas malas, Lúcia chegou até o ônibus com destino a Curitiba. Suas colegas haviam viajado uma semana antes, para arrumar um apartamento e conhecer a cidade. Lúcia ficou cuidando da burocracia legal que envolvia a sua partida. Fez a doação da sua parte do apartamento para a mãe e para o irmão. E agora estava lá, sozinha, como sempre foi a sua vida inteira.

Entrou no ônibus e se dirigiu a poltrona vinte e sete. Pela janela, viu famílias se despedirem. Por um momento, quase chorou, mas a sensação de alívio era mais forte. Estava livre, finalmente, e a estranha certeza de que nunca mais veria seus parentes a deixou feliz.

Sua lembrança mais remota era o seu avô Sílvio a ignorando, sua mãe se queixando por ela ser uma menina e o pai desligado, lendo jornal. Cresceu sentindo inveja de suas colegas, que tinham pais amorosos e dedicados. Elas ocupavam o primeiro lugar, Lúcia, mesmo sendo filha única, o último. Quando o seu avô morreu, não derramou nenhuma lágrima. Nunca o conhecera de verdade. Sabia apenas que era um homem amargo, que às vezes lamentava a morte da esposa, outras vezes a amaldiçoava.

Quando completou doze anos, descobriu que seus pais podiam ser diferentes. Ricardo nasceu e foi tratado como um príncipe. Se para Lúcia não havia dinheiro para comprar um bom tênis, Ricardo podia ir nas lojas e escolher o que quisesse.

Ricardo levou seu pai as dívidas e, conseqüentemente, a procurar mais trabalho. Foi depois de trabalhar o dia inteiro em uma obra sentando tijolo, que Pedro foi trabalhar como auxiliar de padeiro. Com muito sono, ligou o forno sem tomar os devidos cuidados, e morreu na explosão que provocou. Não receberam um centavo pelo seu falecimento e a seguradora quase os cobrou pela destruição.

Tempos difíceis para uma moça de quinze anos. Arrumou o seu primeiro emprego, como vendedora de uma loja de bijuteria perto de casa. Pela primeira vez, desejou fugir de tudo. Mas seu senso de responsabilidade sempre foi mais forte.

E agora, olhando a estrada, sentia pela segunda vez a velha revolta. Mesmo ajudando em casa, sua mãe nunca lhe respeitou. Sempre lhe impôs as suas vontades, mesmo que isso desagradasse ou magoasse Lúcia. Aos poucos, foram parando de se falar, e apenas o necessário era pronunciado.

Por mais que doesse, sabia que Joana só não havia lhe corrido de casa porque era ela quem pagava a maioria das contas. Lembrou do rosto da mãe ao dar a notícia. Um misto de alívio e desespero. Ao saber que Lúcia continuaria a mandar dinheiro, só o alívio permaneceu.

Seu irmão Ricardo recebeu a novidade de forma indiferente. Sabia que, por ele, a mãe até trabalharia. Ele era o mundo dela, Lúcia, uma fonte de renda.

A lua refletiu no mar e Lúcia deu um sorriso triste. Nunca mais os veria. Mas não era isso que fazia as lágrimas escorrer em seu rosto, era a certeza de que sempre seria sozinha.

Quando o ônibus passava pela entrada de Torres, Lúcia dormiu.


– Você pensou que a vida era fácil? – perguntou a mulher sentada ao seu lado, com longos cabelos ruivos e olhos verdes.

– Hein?! Assustou-se Lúcia. Franzindo as finas sobrancelhas, olhou para aquela que parecia ser uma versão bonita de sua mãe. Reparou no vestido azul e na manga que não escondia no braço esquerdo um sinal igual ao seu.

– Eu sei o que você está sentindo – disse a mulher ignorando a sua surpresa – mas eu aprendi a conviver com a solidão. Somos pessoas destinadas a nunca seremos amadas.

– Você fala como se me conhecesse muito bem.

– E eu conheço, Lúcia. Você é como eu. Mas em breve irá descobrir que ninguém vale as suas lágrimas, porque ninguém vai orar por sua alma.

A estranha lhe tocou, e sua mão era extremamente gelada.


Lúcia acordou num pulo. O céu estava clareando e era possível ver que estavam em uma área urbana. Ao colocar as mãos no rosto, percebeu que havia chorado durante o sono. Lembrou da mulher e sua pele ficou arrepiada.

“É apenas o seu inconsciente dizendo para você parar de chorar por quem não te dá valor” pensou. E ao observar as ruas limpas, se deu conta que havia chegado ao seu destino. “De agora em diante, surge uma nova Lúcia. O passado ficou para trás, assim como os laços de sangue, os amores que não deram certos e todas as minhas causas perdidas.


Eram seis da manhã de sábado. Ao entrar na rodoviária viu as duas amigas sentadas. Agora tinha quem a esperasse. A nova Lúcia pegou um espelho na bolsa, ajeitou os cabelos castanhos, passou um lenço umedecido pela pele branca e passou um batom rosa nos lábios finos. Antes de fechar a bolsa, viu a pedra em formato de triângulo, passou os dedos de leve e sorriu. “Meu amuleto. As coisas já estão começando a melhorar. Só falta você me arrumar um homem bem gostoso”.

O ônibus parou e ela levantou, ajeitou os ombros e desceu os degraus cheia de classe. As amigas se olharam surpresas e logo em seguida correram para abraça-la.

– Estamos morando aqui perto. – disse Clarissa – que pegava a mala menor.

– Nossa... você não tinha tão pouca coisa como dizia – brincou Soraya, que puxava a mala maior.
– Gurias, larguem isso. Eu levo.

– De jeito nenhum. Você viajou a noite inteira. Eu e Clarissa sabemos como é cansativo.

– E vamos pegar um táxi. A saída é bem perto.


Soraya e Clarissa colocaram Lúcia a par de todos os eventos. O motorista do táxi, um senhor simpático, as ajudou com as malas e sugeriu alguns lugares. Mas não conversaram muito, em cinco minutos estavam na frente de um condomínio com três edifícios.

– Ilhas Gregas? – observou Lúcia.

– Agora somos deusas – respondeu Clarissa.

– Bom dia seu Maciel – Soraya se dirigiu ao porteiro – essa é Lúcia, a amiga que comentamos.

– Bem-vinda Dona Lúcia.

– Obrigada. Mas dispenso o dona.

– É nesse primeiro aqui, o Santorini. O nosso apartamento é no décimo andar e temos uma vista maravilhosa para o Jardim Botânico.

Ao entrar no apartamento, Lúcia achou que estava sonhando ainda. O sofá verde, a mesa de madeira escura com tampão de vidro, a cozinha branca.

– Vocês já mobiliaram?

– Somos muito eficientes. – comentou Soraya.

– Realmente somos – concordou Clarissa – mas o alugamos mobiliado. O preço estava ótimo e ele tem três quartos. Estava destinado a nós.

– Com certeza. – Lúcia concordou encantada.

– Venha. O seu quarto é o azul.

O azul era do mesmo tom do vestido da mulher que havia aparecido em seu sonho. Lúcia sacudiu a cabeça, não entendia a razão de não esquece-lo.
– Você não gostou? – perguntou Clarissa.

– Não gostei? Eu amei.

– Seja sincera. Vimos você sacudir a cabeça, não é Clarissa?
Clarissa concordou com um gesto de cabeça, olhando preocupada para Lúcia.
– Não gurias. Apenas me lembrei de um sonho que tive no ônibus. O quarto é maravilhoso. Nunca imaginei ter um assim.

Dormiram o resto da manhã e aproveitando que à tarde daquele sábado estava ensolarada, foram ao jardim botânico. Lúcia se impressionou com a grande estufa de vidro, Clarissa tirava foto delas junto a todas as flores e Soraya as fez caminhar por todas as trilhas. Retornaram exaustas. Clarissa foi direto para a cozinha.

– Gurias. Não temos pão.

– Hora do sorteio. – comentou Soraya que escrevia em três papéis. – Quem pegar o que tiver a palavra “Padaria” é a encarregada de buscar os pães.

Cada uma pegou um, Lúcia abriu o seu e se descobriu ganhadora da missão.

- Ok, onde fica a padaria?

– Aqui na frente. É só atravessar a rua. – Clarissa indicou.

Lúcia chamou o elevador, quando chegou, tinha uma simpática senhora com cabelos que pareciam algodão doce. Seu vestido lilás era um tanto chamativo, mas o sorriso que ela lhe deu, a tornava irresistível.

– Boa noite. – disse Lúcia.

– Boa noite, Lúcia. Finalmente veio de encontro ao seu destino?