sábado, 31 de julho de 2010

Capítulo Quatro

Os diários de Manoela Galdos

“Diário Um

Olá querido diário. Sou Manoela Ribas, tenho dez anos e sou filha de Irina e Arnaldo Ribas. Meus pais são donos de uma fábrica de papel. Estudo em uma escola de pessoas ricas, mas não sou rica. Por isso me apelidaram de papeleira. Meu irmão não dá bola, diz que eles não são nada, mas eles ainda vão me tratar como uma princesa.”


“Diário Quatro

Hoje estou completando treze anos. Mas meu irmão estragou toda a festa. Ele engravidou uma empregada. Mamãe disse que se for um menino, ela irá perdoar, e ele será herdeiro de tudo. Não consigo compreender Dona Irina. Como pode permitir que Sílvio se case com uma qualquer?”


“Diário Cinco

É uma menina. Colocaram o nome de Joana. Achei que Dona Irina iria corre-los, mas não, permitiu que eles tivessem mais uma chance de terem um filho. Mas eu não darei essa chance. Agora que estou menstruando, tenho chance de lutar com o meu irmão.”

“Julios Galdos é um homem atraente. Doentio também, Pois com quarenta e cinco anos não desgrudava os olhos de uma ninfeta como eu, uma inocente menina de quatorze anos. Foi isso que facilitou tudo. Leva-lo até o jardim para mostrar as rosas, foi fácil e não precisei fazer nada para ele me tocar. Senti medo quando ele avançou e me tocou intimamente. O polegar acariciando o que, no futuro, será o bico dos meus seios. Quando me dei conta, ele levantava a minha saia e tirava a minha calcinha. Com as calças arriadas, ele me invadiu. Doeu. Sangrou. E ele se assustou. Me senti suja.”

“Valeu a pena. Estou grávida. Mamãe está horrorizada. Papai injuriado. Ameaçou matar Galdos, mas tudo se resolveu com o pedido de casamento. Em dois meses me caso. Ficarei escondida de todos. Pois Dona Irina não quer falatórios. Mas se tudo der certo, ela ficará orgulhosa do meu filho.”
“Diário Seis

Em 15 de maio nasceu João Felipe Galdos, único herdeiro dos Ribas e dos Galdos. Sim querido diário, único. Pois a vaca da esposa do meu irmão engravidou junto comigo, mas morreu no parto, ela e o filho. Henrique é o nome que colocaram no tumulo. Meu irmão Sílvio surtou. Pegou sua filha e foi embora."

“Diário Onze

Achei uma pedra no antigo quarto de meu irmão. Estou grávida novamente e precisava de um local para o bebê. Fazia cinco anos que ninguém, além das faxineiras, entravam ali. E lá estava ela, dentro da cômoda de Isabela, falecida esposa de Sílvio. Só não entendi a reação de mamãe quando a viu. Arrancou de minha mão e saiu correndo. Ela caiu nas escadas e quebrou o pescoço. Quando a vi, meu primeiro impulso foi ir até ela e recuperar a pedra, que coloquei em meu bolso. Só depois chamei por socorro. Agora estou olhando para esse triângulo gelado, e não tenho idéia de que mistério esconde.”

“Perdi o meu bebê. Acho que fui castigada, pois como minha cunhada, meu sangue lavou os lençóis durante a noite e agora, não posso mais ter filhos. Julios me chamou de incompetente e eu, o chamei de velho caduco. A dor é muito grande, até porque essa criança era muito diferente, ela era especial, foi feita com amor. Com todo o amor que sinto por Diogo. Sei que essa criança seria uma mistura nossa, talvez com os cabelos castanhos de Diogo e os meus olhos verdes, ou talvez com os meus cabelos vermelhos, iguais os da minha mãe. Minha mãe, que falta você me faz. Mas a culpa é sua, por ter inventado a idéia de que o herdeiro seria o filho que lhe desse o primeiro neto homem. Como sou infeliz.”

“Diário Treze

Entrei no quarto de Dona Irina hoje e, quem diria, mamãe também tinha diários. Comecei a ler e descobri coisas muito interessantes. Não sabia que ela havia morado em Minas Gerais. Nem que já tinha sido casada com um tal de Carlos. Ela também cita uma pedra, que ela chama de maldita. Uma pedra retangular com um reflexo semelhante a que encontrei no quarto do meu irmão. Agora entendo a reação dela. Diz ela que ganhou a pedra da sogra, que a odiava, e o presente trouxe muitas desgraças, entre elas a morte de Carlos”.

“Deus meu. Minha mãe teve um filho e o abandonou. Agora entendo o desejo do filho homem, ela queria algo para amenizar o sentimento de culpa. Por via das dúvidas queimei todos os diários, se descobrirem esse filho e ele tiver um filho homem mais velho que o babaca do João Felipe, meu sacrifício terá sido em vão”.

“Diário Vinte e Cinco

Estou doente, meu Deus. Muito doente. A febre me consome, os médicos não sabem o que é, nenhum remédio resolve. O que adianta todo esse dinheiro se irei morrer tão jovem? E quem diria, o imbecil do Julios irá sobreviver a mim, logo eu, que contava os dias para ele bater as botas e encontrar o meu verdadeiro amor. Embora eu ache que esse tenha sido Diogo, a quem agora estou indo encontrar. Coloco a pedra gelada sobre a minha testa, para ver se alivia. Ela poderia me dar sorte e devolver a minha saúde. Mas nem o sangue forte de minha mãe me faz lutar.”

“Pela primeira vez, desejei ter meus irmãos por perto. Sílvio, que não vejo a vinte anos, e esse desconhecido. João Felipe vai precisar de ajuda, é uma criança em forma de homem, mimado demais pelo pai. Se ninguém mais da família estiver por perto, o que vai ser desse menino? Meu último desejo é que ele arrume uma boa moça, jovem e bonita como ele, que o ajude a encontrar o caminho correto. Mas pra quem fez tanta coisas erradas, não sou merecedora de mais nada.”
“Cláudia, minha assistente particular, contratou um detetive pra mim. Sílvio está morto e meu outro irmão está no Rio de Janeiro. Vou tentar localiza-lo. Agora, vamos aos fatos estranhos do dia: a pedra estava quente e um gato avermelhado, de olhos verdes como os meus, apareceu no meu quarto, mas ninguém mais o viu. Mandei todos procurarem, pois odeio gatos. Preciso dormir, me sinto muito fraca.”

domingo, 18 de julho de 2010

Capítulo Três

São Paulo, Morumbi

– Vagabunda. Pilantra. Eu vou dar a volta por cima e você virá de joelhos, implorando por uma migalha de carinho.

João Felipe Galdos urrava na suíte que ocupava na mansão, produzindo ecos nas peças próximas. Revirando as gavetas, cofres e armários, constatava o inevitável: sua esposa e única fonte de renda, havia ido embora.

– O que ela esperava? Feia, gorda, velha... ninguém mais vai ter coragem de colocar uma aliança naquela mão ressecada . Muito menos trepar com ela. O que custava me deixar dar umazinhas com as mocinhas do clube? Maldita. – exclamava enquanto se dirigia ao outro - E agora? Quem vai sustentar essa casa? Não posso perder o único bem da minha família.

Como se levasse um soco, João se atirou para trás, caindo de costas na cama. “Estou cansado, estou muito cansado” pensou enquanto procurava o travesseiro mais próximo “amanhã... amanhã tudo será resolvido”.

O sol estava alto quando acordou. Pensou em pegar um robe, mas lembrou-se que estava de roupa. Tirou a camisa de seda amassada e a calça social. Entrou no banheiro e tomou um jato de água fria. Com a cabeça jogada para trás, deixou os olhos fechados enquanto a mente começava a trabalhar. Sentia-se como se tivesse bebido muito. Uma enxaqueca apertava-lhe os olhos e as pernas cambaleavam. Abriu a porta do Box, pegou uma toalha e procurou uma aspirina no armário do banheiro. Encarou-se no espelho. Para um homem perto dos quarenta estava bem, mas não o suficiente para competir com os jovens modelos.

Necessitando do colo da mãe, caminhou até a suíte principal da casa e deitou-se na grande cama. Manoela Galdos havia sido uma grande mulher, talvez por ser tão bela, inteligente e forte, morrera cedo, aos trinta e cinco anos, vítima de uma febre misteriosa. Após a morte da mãe, seu pai, um velho de sessenta e cinco, começou a namorar uma jovem de vinte e nela desperdiçou todo o seu dinheiro. Quando ele morreu, só havia restado a João a beleza dos traços aristocráticos herdados do pai e a mansão.

Mas foi a combinação do sobrenome Galdos, tradicional na sociedade paulista, com o corpo jovem e esbelto, somado aos olhos azuis e a mansão do Morumbi que atraíram a emergente Nádia Dias. Uma mulher de quarenta e cinco anos, gorda, dona de dez cachorros e de uma das maiores redes de hotéis do Brasil. Dinheiro fácil, se ele usasse a imaginação. E por isso, aos vinte e oito anos se casou com a mulher que lhe garantiria o sustento.

Pena que o ditado estava certo, tudo que é bom dura pouco, e num descuido, sua foto agarrado a jovem professora do clube que freqüentava foi parar na imprensa. Nádia havia engolido suas traições durante os dez anos, mas não poderia se sujeitar à humilhação de sua infidelidade ser pública. E lá se fora a sua galinha dos ovos de ouro.

Não tinha amigos a procurar, e mesmo que tivesse, nenhum o entenderia. Somente a sua mãe. Ela sim, que fizera a mesma coisa a trinta e oito anos atrás. Aos quinze anos ficará grávida de Julios Galdos, um homem de quarenta e cinco anos, o solteirão mais desejado da sociedade paulistana, e garantirá um sobrenome e a sua própria herança.

O sobrenome de agora nada adiantava. A casa estava vazia. Os empregados haviam ido embora com Nádia. E ele simplesmente não sabia o que fazer com a mansão.

– Madame Nádia decidiu ser gentil – disse o velho advogado - e não vai lhe exigir metade da mansão dos Galdos.

– Nem poderia – resmungou João – existe um documento dizendo que ela está fora da partilha, só um herdeiro meu teria direito.

– Pois bem – continuou o advogado – Madame lhe dará uma pensão.

– Pensão? – arqueou as sobrancelhas – Qual é o jogo Solano? Vamos lá, meu Velho. Diga.

– Não tem jogo nenhum Galdos. É apenas um pagamento. Graças ao seu sobrenome , ela se firmou na sociedade. Com isso, ela lhe dará uma pensão, não muito grande, durante dez anos. O valor não é o suficiente para sustentar essa casa.

– A vingança dela é a venda da mansão Galdos?
– Não. Ela não está se vingando – Solano encarou João de forma paternal – Assim como eu, Madame tem pena do senhor. Olhe a sua vida. Você não tem perspectiva nenhuma. – O advogado se levantou e foi até a janela mais próxima, onde a vista dava para um jardim descuidado. – Pense como uma chance de dar algum sentido na sua vida. De ser um homem de verdade e tomar as rédeas do seu destino.

– Não sabia que era psicólogo, Solano.
– Não seja irônico, João. Fui amigo dos seus pais e vi a grande bobagem que fizeram contigo. E não creio que você seja merecedor da sorte de ter encontrado alguém como Nádia, que merecia muito mais respeito da sua parte.

– Mas agora você pode dar esse respeito a ela, Solano – Enquanto João sorria o rosto do velho foi tomado de uma grande vermelhidão – sei da sua paixão por Nádia. Mas ela queria um sobrenome que lhe abrisse as portas da sociedade. Agora você poderá conquista-la e ambos serão felizes para sempre.
– Não é hora para brincadeiras, João. De qualquer forma, você é quem sabe. Daqui a uma semana passe em meu escritório para assinar os papéis.


Duas semanas depois, João recebia a notícia que a mansão havia sido comprada. Sabia que era Nádia, mas não podia fazer nada. Não tinha dinheiro para manter a mansão, sua pensão era suficiente apenas para alugar um flat, não para manter uma casa de dez quartos. E se aplicasse o dinheiro da mansão, talvez não precisasse se preocupar em trabalhar. Afinal, não sabia fazer nada, nunca teve necessidade de trabalhar ou fazer alguma faculdade.
Naquela tarde iria receber alguns representantes de lojas, pois nisso iria surpreender Nádia. Vendera a casa para ela, mas não os móveis. Havia avisado a imobiliária que, com exceção dos móveis da cozinha, alguns armários de banheiro e closets, o restante seria vendido e não seria entregue para o novo morador da casa. Só que ele conhecia Nádia e sabia que ela havia comprado de olhos fechados, sem perguntar absolutamente nada.

Os dias passaram rápidos, João encaixotava peças pequenas enquanto as grandes eram levadas. Até chegar o dia D, o dia de abrir o quarto de sua mãe e vender o que estava lá. Foi na venda das roupas que achou o cofre, escondido entre os milhares de sapato. Após a venda e retirada dos objetos, ficou naquele espaço vazio olhando para a pequena porta metálica. Sabia a senha. Sua mãe havia repetido aqueles números incontáveis vezes no seu leito de morte. Na época não havia entendido o que eram, finalmente sabia sua serventia.

Com cuidado, foi informando a combinação, após o último número, ele ouviu o click e a porta se abriu. Vários livros, diários, se corrigiu, apareceram. E uma pedra em formato triangular, que João lembrava de ter visto sobre a testa da mãe logo no início da doença. Nunca a esquecera pelo reflexo ora amarelo ora rosa que ela apresentava.

Guardou tudo com cuidado. No outro dia uma caminhonete viria buscar suas coisas e leva-lo para o seu novo lar. Entregaria as chaves do lugar em que havia nascido. Sua mãe deveria estar se revirando no tumulo por causa disso. Sem solução, desceu as escadas e admirou tudo a sua volta, como se fosse a primeira vez. Colocou a caixa, com os pertences de sua mãe, no canto perto da porta, junto com outras coisas, e com a pedra na mão, foi até a janela.

Lembrou da morte de sua avó materna. Na verdade, foi naquele dia que vira aquela pedra pela primeira vez. Deveria ter uns cinco anos e ela estava nas mãos de sua mãe, que acompanhava os reflexos amarelos e rosas através da luz da janela, quando sua avó entrou na sala e deu um grito. Sem nenhuma explicação, arrancou a pedra da mão de sua mãe perguntou gritando onde diabos havia arrumado aquilo. Pela primeira e única vez, virá a mãe acuada, mas não lembrava da resposta, apenas que sua avó saiu furiosa para a rua, de onde nunca mais voltou. Ela tropeçou nos degraus da escada e quebrou o pescoço. Sua mãe, antes de chamar o médico, recolheu a pedra e guardou no bolso lateral do vestido.O enterro foi triste e o primeiro de muitos, já que seus avós paternos seguiram o mesmo destino três anos depois. Sua família havia sido reduzida a três pessoas e agora era apenas uma: ele.