domingo, 27 de março de 2011

Epílogo

Joana caminhava na Rua da Praia segurando um pacote em uma das mãos e a mala em outra. Pedro puxava uma mala de rodinhas e o outro pacote que haviam pegado no correio. Olhou para o rosto de sua mãe, mas esse não expressava nada.

– É muito bizarro.

– O que é bizarro, Pedro?

– Buscar o que sobrou da minha irmã no correio.

– Quem mandou ela se enviar a quilômetros de distância sem me avisar. Eu não tinha como pagar o transporte do corpo.

– Eu sei, mãe. Não estou lhe criticando, estou apenas dizendo que é estranho. Eu, por exemplo, nunca imaginei que se enviasse as cinzas de uma pessoa pelo correio.

– Eles nem devem saber. A nossa sorte foi eles terem pago a cremação dela.

– Eles são mesmo nossos parentes?

– Eu não sei. Eles encontraram o desenho de uma árvore genealógica nos destroços do carro, feita pela mãe deles. Tudo indica que ela era uma prima distante nossa, assim como um outro rapaz e um menino que estavam no carro.

– Tu sabias da existência dessa gente, mãe?

– Do rapaz chamado João, sim. Seu avô havia me comentado sobre o nascimento dele. Um pouco mais novo do que eu. Mas do menino, nunca havia ouvido falar.

– E esses que nos enviaram as cinzas da Lúcia, são nossos parentes?

– Eles são filhos adotivos da tal Vivian. Descendentes do mesmo sangue, só restaram eu e você. Mas eles estão interessados em manter contato e como eles tem dinheiro, não irá nos fazer mal.

– Como vamos ficar sem o dinheiro que a Lúcia nos enviava?

– Não sei. A empresa vai nos mandar alguma coisa do seguro dela. Também tem um valor por causa do acidente, mas isso os filhos dessa prima vão ver e nos repassar.

– Tu confias nele?

– Eles cremaram a tua irmã de graça, não? Isso já serve de voto de confiança. Agora, vamos andar rápido. O ônibus sai em uma hora e temos que caminhar até a rodoviária.

Caminharam até a rua Senhor dos Passos, desceram e chegaram na Voluntários da Pátria, onde passaram com dificuldade pelas lojas populares e seus vendedores que tentavam puxa-los para dentro. Vinte minutos depois, chegaram na rodoviária, que se encontrava vazia por ser quarta-feira.

Sentados esperando o ônibus, abriram o primeiro pacote. Joana encontrou uma pequena caixa de madeira com o desenho de Nossa Senhora.

– O que você fez, Lúcia? – seus olhos se encheram de lágrimas – Por que você foi tão longe, sem me falar nada? – um sentimento de culpa, por ter se mantida afastada da filha a dominou. Se fossem mais próximas talvez Joana soubesse o que a filha foi fazer em Belo Horizonte com um bando de primos desconhecidos.

– Era pra ser. Não adianta você se culpar. – Pedro a consolou.

– Eu deveria ter sentido. Se ela confiasse em mim.

– Se, se, se... mãe não existe mais se. – Disse perdendo a paciência. – Já foi. É um fato consumado.

– O que tem no seu pacote? – Joana secou as lágrimas, só agora lembrando da segunda encomenda.

– Deixe-me ver. – Pedro abriu o pacote – É uma pedra.

– É parecida com uma pedra triangular que sua irmã havia ganho. – Joana reconheceu. – Eles me disseram que iriam enviar os objetos que estavam com ela. Onde será que arrumou essa pedra?

– E eu que sei mãe. Eles enviaram a bolsa dela também. – Pedro abriu a bolsa – Olha só... o celular dela está intacto. Tem várias chamadas não atendidas. – Apertou algumas teclas do aparelho. – São das amigas dela.

– Amigas? Só serviram para dizer que ela tinha sido cremada e que eu jogasse as cinzas na praia.

Pedro sabia que não havia sido exatamente assim. Mas quem poderia culpar sua mãe por não ter paciência para escutar as pessoas responsáveis por tirarem sua única filha de casa. Joana não havia deixado nenhuma das moças falarem. O rapaz havia se admirado dela guardar a informação de que a irmã gostaria de ter as cinzas jogadas no mar.

Com um bocejo, Pedro se acomodou melhor ao lado da mãe, abriu uma revista e ficou esperando pelo ônibus. O motorista abriu a porta e o compartimento de malas. Joana, Pedro e os poucos passageiros que aguardavam se encaminharam até o ônibus. Depois de etiquetarem as malas, mãe e filho subiram os degraus e começaram a procurar seus lugares.

– É aqui, Pedro. – Observando que o filho não se sentava, olhando para a frente – O que foi, Pedro?

– Não sei. – Pedro se sentou e com cuidado, acomodou o pacote com as coisas de sua irmã em seu colo – o motorista está meio alterado, conversando com outro homem. Será que tem alguma coisa errada com o ônibus?

– Não tem nada, Pedro. Tu achas que eles colocariam um ônibus com problema na freeway? Devem estar reclamando do salário.

Na rua, o motorista olhava preocupado para os pneus dianteiros.

– Cara. Esse ônibus não tem condições. O Rafael já me disse que quase não conseguiu frear na vinda para cá.

– Vamos fazer o seguinte, Cardoso. Faz só mais essa viagem de ida e volta. Quando você chegar, leva direto para a garagem. Vou deixar um recado para o pessoal da manutenção verificar os freios.

– A responsabilidade é de vocês.

– É, nossa, Cardoso. Não esqueça de que como motorista tu também é representante da empresa. Agora chega de onda e entra no ônibus, quanto mais cedo sair, mais cedo volta.

– Tá certo.

– E tira o gato de dentro do ônibus.

– Que gato? – Cardoso estranhou.

– Tive a impressão de ter visto um gato na sua poltrona. Esquece e vai.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Cinema: Cisne Negro


Sai do cinema sem saber exatamente o que pensar. Uma mistura de chatice, obsessão e maravilhoso parece envolver o filme Cisne Negro. É difícil se desligar da imagem da jovem bailarina, principalmente do seu olhar, que expressa medo, pavor, timidez e uma profunda tristeza.
Conforme a pressão aumenta sobre a personagem, mais difícil fica ao telespectador diferenciar o real do imaginário. Por isso ouso dizer que é isso que torna o filme surpreendente, pois o final é previsível, embora isso não o torne mais leve ou menos erótico, pois a sensualidade a maldade são os alimentos para o cisne negro.
Com uma excelente atuação de Natalie Portman, o Oscar de melhor atriz de 2011 foi mais do que merecido, onde o auge ocorre nas transformações dos cisnes (de branco para preto e finalizando com o branco). Seus gestos e ações provocam compaixão, pulos na poltrona e uma angústia que podem durar mais do que duas horas.
Alguns podem achar que a história é sobre a loucura (como ouvi na saída do cinema), mas eu diria que é sobre se libertar. E esse é o grande desafio ao subir o letreiro, se libertar da história de Nina.
Mesmo assim, ainda concordo com a estatueta para O Discurso do Rei. São filmes diferentes, pois se O Cisne Negro é denso e opressor, O Discurso do Rei é inteligente e envolvente, mas ambos merecedores de serem assistidos.

domingo, 13 de março de 2011

Capítulo Vinte e Seis

Belo Horizonte, aeroporto

– Alguém vem nos buscar? – Lúcia olhava para frente, enquanto caminhava pelo corredor, até a porta de saída do avião.
– Um homem chamando Antônio vem nos buscar.
No saguão, viram um homem alto, segurando uma placa com o nome de João.
– Boa noite. Eu sou o João.
– Boa noite. Sou Antônio, primo de Vivian, e vim busca-los. – o homem sorriu e os levou até o estacionamento. Entraram no carro e Doca ficou olhando pela janela.
– Vocês já conheciam Belo Horizonte?
– Não. – João respondeu. – Mas é uma bonita cidade.
– Eu também não. – Lúcia falou, enquanto observava as ruas. – Aliás, até pouco tempo atrás só conhecia Porto Alegre e Tramandaí.
– E eu, o Rio de Janeiro. – Doca comentou.
– Vocês trouxeram a pedra? – Antônio perguntou sério.
– Está nessa bolsa. – João levantou – não somos louco de deixa-la com outros.
– Como assim? - Antônio que havia parado no sinal, olhou para João.
– Ela mata as pessoas. – Doca respondeu seco – Matou a minha mãe.
Antônio arregalou os olhos. Encarou João, como se procurasse uma confirmação.
– É verdade. – Lúcia completou, ao notar que Antônio não acreditava nas palavras de Doca. – Essa pedra tira a vida de pessoas inocentes.
– Achei que ela só fizesse mal aos herdeiros.
– Não. – Lúcia colocou uma mexa do cabelo para trás da orelha, em um gesto nervoso. – Ela faz mal para todos os que a tocam.
– O que Vivian tem haver com a pedra? – João se manifestou
– É melhor que ela mesmo explique.

Entraram em um bairro de casas grandes e carros importados. Pararam em frente a uma garagem e os portões se abriram. O carro parou na porta da mansão e todos desceram. Nas escadas de acesso a casa, uma senhora os esperava.
– Os filhos de Irina. – Sorriu e e abriu os braços. – Por favor, entrem. Eu sou Vivian.
– Eu sou o João. Esses são Doca e Lúcia.
Vivan abraçou e beijou cada um com carinho. Doca aceitou o afeto de bom grado. João se sentiu constrangido e Lúcia ficou desconfiada. Acompanhando o gesto que Vivian fez com as mãos, todos entraram na casa. O interior estava todo iluminado, dando a impressão de opulência e ao mesmo tempo de aconchego.
Estavam se dirigindo a sala principal, quando Doca olhou para dentro de uma das portas que se encontrava aberta, parando repentinamente.
– É aqui. – Doca reconheceu, puxando João e Lúcia para dentro da sala. – Foi aqui que as pedras se uniram. Olhe as cortinas, Lúcia.
– Esta é a antiga sala particular de madame Elvira. – Vivian observou, se aproximando do garoto. – O que foi aqui dentro?
– É aqui que a bruxa uniu as pedras.
– Uniu?
– Cada um de nós encontrou um pedaço da pedra – João explicou – conforme nos encontramos, ela foi se juntando. – abriu o fecho da bolsa que carregava e tirou o retângulo de dentro – agora ela é uma só.
– É ela. – Vivian pegou a pedra e observou. Em sua superfície, os mesmos símbolos. – Ela encontrou vocês e os fez se encontrarem? – João concordou com um gesto de cabeça. – É surpreendente.
– A senhora tem idéia do por que?
– Tenho. Irina teve três filhos. Vocês são os três descendentes. Nenhum com filhos. Conforme as magias antigas, vocês são as três chaves para encerrar essa maldição.
– E a senhora entra aonde, nessa história? – João a encarava.
– Eu sou a tradutora. O que me faz pensar que sou uma espécie de portal. Afinal, também tenho o sangue de Irina e de Elvira.
– Quem é Elvira? – Doca perguntou curioso por ouvir aquele nome novamente.
– É a bruxa que você viu, meu filho.
– Você é irmã da minha avó?
– Não. Sou sobrinha. Minha mãe era meia-irmã de Irina.
– Por conseqüência, meia-irmã de Elvira. – Lúcia olhou para as próprias unhas e lembrou-se do seu irmão. – Essa maldição tem a ver com ciúmes?
– De certa forma sim, Lúcia. Mas venham. – Disse, indicando a porta para que os três saíssem do local. – Vamos até a sala principal.
Caminharam em silêncio o curto trajeto. A sala indicada era grande e iluminada. Ao contrário da outra, todas as janelas tinham as cortinas afastadas, permitindo que se avistasse o jardim.
– Sentem-se. – Vivian falou. – Aqui na mesa tem alguns petiscos, depois da conversa, iremos sair para jantar. – Esperou todos se acomodarem. – Acho melhor explicar tudo para vocês. – Pegou um copo d’água e tomou um gole da bebida antes de continuar. – A história começou com um homem chamado Francisco Soares Ribeiro. Ele era casado com Rosane, mãe de Elvira, mas teve um caso com duas empregadas: Serafina e Elza. Serafina deu luz a Catarina, minha mãe e Elza a Irina, que vocês conhecem bem.
– Eu não conheço essa tal de Irina. – Doca resmungou.
– Não?
– Doca é filho de Josias. – João explicou. – O filho que minha avó abandonou.
– Irina abandonou um filho? – Vivian estava surpresa.
– Sim.
– Meu Deus. Espero que isso não interfira na quebra do feitiço.
– Existe realmente um feitiço?
– Infelizmente sim, Lúcia. Elvira sentia um ódio muito grande dos herdeiros bastardos de seu pai. E isso só aumentou quanto Irina se aproximou de seu único filho: Carlos.
– Sobrinho dela? – João arregalou os olhos – Minha avó paquerou o próprio sobrinho?
– Ela casou com o próprio sobrinho.
– Ela não sabia?
– Sabia, Doca. – João respondeu – Ela casou por vingança.
– Exato. – Vivian concordou. – Ela casou por vingança, para recuperar o que acreditava ser seu por direito.
– Mas Elvira sabia. – Lúcia esfregou as mãos.
– Ela sabia. E deu essa pedra de presente para Irina. – Vivian se levantou para colocar um pouco de chá em sua xícara – Mas me parece que Irina acabou se apaixonando por Carlos e ficou grávida dele. Mas a pedra abortou esse sonho e Irina colocou a pedra na pasta de trabalho de Carlos.
– E ele morreu. – Doca afirmou.
– E ele morreu. – Vivian repetiu. – Irina devolveu a pedra para Elvira e foi embora de Belo Horizonte. Um mês depois, Elvira morreu.
– De tristeza?
– Não, Lúcia. De maldade, pura e simples. Ela transformou essa casa em seu objeto para o mal. Todas as paredes continham maldições. Para o marido, para futuros moradores, para a minha mãe... mas não havia nenhum para vocês.
– Por que havia a pedra.
– Exato, João. A pedra é a maldição de vocês. Para que todos os mortos descansem em paz e vocês busquem a felicidade aqui, precisamos quebrar esse feitiço.
– E como iremos quebrar? Ela quer nos matar!
– Ela não pode nos matar, Doca. – Lúcia tentou tranqüiliza-lo. – Ela está morta.
– Ela está morta, mas a sua maldade não, Lúcia. – Pela primeira vez, a voz de João tremeu. – Parece que você não escutou o que a dona Vivian disse.
– Está com medo de fantasma, João? – Lúcia provocou.
– João está certo, Lúcia. Apesar do corpo estar morto, seu espírito ainda nos ronda. Para quebrar, precisamos decifrar o que está escrito na pedra.
– E quando o faremos?
– Pode ser agora. Vamos até o escritório.
– Me explica uma coisa... – João começou, enquanto seguiam Vivian - se você também tem o mesmo sangue, porque não recebeu um pedaço da pedra?
– Acho que minha mãe nunca ofereceu nenhum obstáculo, já Irina matou o único filho dela. Talvez isso me livre dos males da pedra.
– Olho por olho – Foi a única idéia que ocorreu a João.
– Exato. – Odete abriu a porta – Sentem-se. – Foi até uma mesa de madeira escura e ligou o computador que ali estava. Pegou um bloco e uma caneta. – Vamos lá. – Começou a digitar no teclado.
Em silêncio, observaram Vivian abrir um livro antigo, comparar os símbolos e fazer anotações no pequeno bloco. Esperaram ela decifrar o código. Doca nem se mexia, já Lúcia enrolava um cacho imaginário e João mexia os dedos.
– Estranho... – Vivian olhou para a frase que tinha escrito e leu em voz alta. – “Tudo retornará quando eles estiverem no único lugar que me traz paz” e do outro lado “A paz está onde me sinto feliz”.
– Onde Elvira se sentia feliz? – João perguntou, colocando as mãos no bolso.
– Não tenho idéia... mas no diário deve ter alguma pista.
– Ela tem um diário?
– Sim. Vocês me dão um minuto? – Vivian não esperou resposta e saiu.
– Estou com medo, João.
– Não se preocupe, Doca. Mais um pouco, e você vai estar enfrentando provas de matemática. Ainda vou ouvir você dizer que isso tudo foi fichinha.
– Eu só não entendo por que nós, e não os nossos pais. Ou o meu irmão.
– Aqui está. – Vivian entrou no escritório – Vamos ver se achamos alguma coisa.
– Senhora... por que nós? – Lúcia perguntou.
– Bom... seguindo a lógica das antigas línguas, nós temos o cavalheiro, aqui representado pelo João, a força da terra, pela Lúcia e você, Doca, é a inocência.
– Mas por que Lúcia é à força da terra? – O menino olhava para Lúcia com curiosidade.
– Por que ela é mulher. Conforme as culturas mais antigas, a mulher é a verdadeira força, pois ela é a única capaz de gerar vida, portanto, a responsável em dar continuidade à espécie.
– Um pensamento feminista, Doca. – O comentário de João descontraiu o clima pesado e provou reação imediata de Lúcia.
– Não seja machista, João. Você sabe que a senhora Vivian tem razão.
– Já que eu tenho razão, vamos deixar de discutir e procurar o lugar de paz da madame Elvira.
Atentos, folhearam as páginas até encontrarem uma anotação da ainda jovem Elvira:
“Posso ter 19 ou 99, mas hoje tenho consciência de que apenas o meu lar original será o meu lugar de paz. Vejo essa movimentação, as damas da sociedade esforçando-se para ser jovens e belas. Mas nada concede força, beleza e liberdade como os ares da fazenda do meu pai.”
– Onde fica essa fazenda? – João perguntou
– Próxima. – Vivian respondeu, lembrando-se do lugar ao qual o parágrafo se referia. – Quando pequena íamos lá no verão.
– Vamos?
– Mas é noite, Lúcia. – Doca argumentou.
– Creio que não haverá problemas. – Vivian falou, com uma voz cansada. – Vamos acabar com isso de uma vez. Quero ir para casa. – Foi até a porta e chamou – Antônio!
– Sim, Vivian.
– Prepare o carro. Vamos na antiga fazenda dos Ribeiros.

Seguiram pelas ruas, primeiro passaram pelo movimento dos jovens em buscas de festa, depois encontraram o silêncio. Casas escuras, ruas mal-iluminadas e finalmente uma estrada. Quarenta minutos depois, pararam em um antigo portão, que se encontrava aberto.
– Parece abandonado. – Lúcia comentou
– Está abandonado. – Antônio afirmou – Estranho nenhum sem terra ter invadido.
– Acho que o doutor Adriano nunca cuidou dessa fazenda. Na verdade, ela foi esquecida por todos.
– Quem era o doutor Adriano?
– Era o marido de madame Elvira, Doca.
– E por que a senhora a chama de madame?
– Força do hábito. Eu era filha da empregada.
– Ah, tá.
– Olhem. – João que estava no banco da frente, ao lado de Antônio, apontou – Ali está a casa.
Antônio parou perto da porta. Todos desceram e ficaram olhando para a casa que um dia deveria ter sido muito bonita e imponente, mas hoje tinha a aparência de que qualquer vento a derrubaria.
João pegou uma lanterna com Antônio, subiu os quatro degraus da frente e colocou a mão na fechadura. Essa cedeu e a porta se abriu. Todos se olharam e concordando em silêncio, entraram. Os móveis estavam todos lá, só que enfeitados por teias de aranhas. Eles escutavam a movimentação dos ratos, que corriam como que fugindo deles.
– Vamos até a segunda sala, ali tem um corredor que dá acesso aos quartos.
João caminhou em direção a segunda sala, e conforme Vivian havia indicado, avistou o corredor. Começou a seguir por ele, haviam pelo menos seis portas. Pensou em se virar e perguntar, mas sentiu as mãos de Vivian lhe empurrarem as costas.
Várias pinturas decoravam as paredes. Paisagens e pessoas indicavam como haviam sido os tempos antigos na fazenda. Quando chegavam no final do corredor, Vivian lhe puxou a camisa e apontou para a porta que estava à direita.
Ao abrirem a porta, encontraram um ambiente infantil. Bonecas antigas, com as roupas roídas, estavam sentadas em antigas cadeiras de madeira. O guarda-roupa, que um dia foi branco, tinha detalhes delicados na madeira esculpida. Antigos livros de história encontravam-se atirados num canto.
Inconsciente, começaram a procurar por algo que não sabiam exatamente o que era. Lúcia deu um pulo ao abrir as portas do guarda-roupa e ver duas baratas saltarem de lá. Trancou um grito, mas depois de recuperada, pode observar os vestidos cheios de rendas e babados.
Vivian mexeu na cômoda. Peças íntimas se encontravam ali, junto com aranhas e traças. Quase todas brancas, hoje apresentavam uma cor amarelada.
João mexeu na cama. Nas duas gavetas da parte de baixo havia muitos jogos. O colchão cheio de pontos pretos, indicava um condomínio de pulgas e João cogitou que talvez gatos dormissem ali.
Antônio levantou sua lanterna para o teto, mas a única coisa que encontrou foi um delicado e antigo lustre e várias teias de aranha.
Doca, sentindo-se perdido, foi até o canto atrás da porta e removeu uma pequena caixa de madeira, quando a levantou, notou que não havia nada. Mas ao tocar no chão, sentiu que havia um desviou ali Tateando com cuidado, levantou a madeira do piso e descobriu um esconderijo.
– Gente. Tem alguma coisa aqui.
João se aproximou e colocou a luz da lanterna. Era um espaço limpo, com pequenas caixas e peças. Retiraram tudo e encontraram jóias, diários, bonecas e livros.
– Os tesouros de Elvira. – Vivian comentou.
– E tudo está intacto. Olhe esse lenço – Lúcia levantou a peça – está branco e cheiroso, como se tivesse sido lavado hoje.
– O lugar de paz de Elvira? – João indagou, enquanto folheava o diário.
– Creio que sim. – Lúcia olhou para João, e notou que o observavam. – O diário diz alguma coisa?
– Aparentemente não... fala das coisas do cotidiano de uma menina... hei, esperem um pouco – João apertou os olhos para enxergar melhor – “Papai me fez prometer que eu nunca vou abandonar a nossa casa. Acho que foi por causa do meu irmão, que caiu do cavalo e não voltou mais. Ninguém me conta o que aconteceu com ele. Mas jurei ao papai que sempre estarei aqui”.
– Acho que não é isso. Deixe-me procurar. – disse Lúcia
João estendeu os diários e Lúcia folheou os outros até parar em um. Lendo de trás para diante.
– Encontrei. “Quando eu tinha sete anos, meu pai me fez prometer que cuidaria da casa para sempre. E assim o farei. Hoje estou indo para a casa do meu esposo, ao qual sei, será minha também. Mas também tenho certeza que o meu lugar de paz, sempre será aqui. Por isso deixo todos os meus pequenos tesouros guardados aqui. Pois mesmo quando morrer, será aqui que minha alma virá descansar em paz.”.
– Um feitiço em língua nativa. – Vivian murmurou – Essa casa é realmente importante para ela. Creio que isso fez os estranhos se manterem afastados.
– O que devemos fazer? – João perguntou.
– Vamos guardar tudo. E junto à pedra. Quando fizermos isso, a alma de madame Elvira finalmente retornará para o seu lugar de paz.

Conforme indicado, tudo foi recolocado no pequeno espaço e em cima, a pedra retangular. Fecharam o acesso e colocaram a caixa, como estava antes. Um vento movimentou as antigas cortinas e sem pensar, todos saíram rapidamente da casa. Antônio saiu na frente e abriu as portas do carro. Lúcia, seguida de Doca entraram no carro e João ajudou Vivian a se sentar ao lado deles. Em seguida. Sentou-se no banco do carona na frente.
Antônio arrancou o carro, mas antes tiveram tempo de ver a casa ficar toda iluminada. Passaram pelos portões e logo em seguida ouviram o barulho deles se fechando. Durante dez minutos, todos ficaram mudos, como que revivendo a cena que haviam acabado de presenciar. Olhando pela janela, Vivian notou que o céu estava estrelado e com o coração batendo forte, agradeceu para a mais brilhante o fato de ter finalizado a sua missão.
– Está tudo acabado. – Vivian suspirou aliviada.
– Acho que não. – Doca se abaixou e pegou algo que havia começado a bater em seus pés. Com as mãos tremendo e a voz entrecortada, levantou o objeto e declarou: – A pedra voltou.
Lúcia arregalou os olhos e João se virou para trás como se não acreditasse no que estava vendo.
– Senhora... – João começou – tem algo escrito nas laterais da pedra.
– Acenda a luz, Antônio.
Vivian pegou a pedra e observou os símbolos. Como havia cometido esse erro. Quando pegara a pedra pela primeira vez, havia sentido a ondulação, mas havia achado que era a própria pedra.
– Lúcia, pegue a minha bolsa. Dentro está o diário de madame Elvira.
– Aqui está.
– Pegue um papel e uma caneta... anote o que eu for traduzindo.
– Deixe-me ver...APE...N...AS...A...MOR...TE...TRAS – o carro deu um pulo, fazendo o livro escorregar das mãos de Vivian – ai, o que foi isso Antônio?
– Um pequeno solavanco. Entramos na rodovia agora.
– Tudo bem... deixe-me continuar – pegou o livro que havia caído sobre suas pernas - onde eu estava?
– Aqui, Doca apontou para o símbolo que indica o A.
– Certo: A...P...AZ.
– “Apenas a morte trás a paz” – Lúcia se adiantou.
– Quem trouxe esse gato pro carro? – Antônio gritou
– Cuidado com o caminhão. – Doca retrucou ainda mais alto.

terça-feira, 1 de março de 2011

Motivo inválido

- Bom dia, senhor. No que posso ajudá-lo.
- Gostaria de cancelar o meu cartão.
- Qual o motivo?
- Vou me suícidar.
- Desculpe, senhor. Mas esse não é um motivo válido.
- Como não?
- O senhor irá se matar por alguma coisa que o cartão lhe fez?
- Não, mas...
- Então não posso cancelar, senhor.
- Mas eu não vou mais utilizar. Estarei morto.
- Não sabemos senhor. Ainda não descobrimos a utilidade do cartão na vida pós morte.
- Mas eu não vou levar o cartão.
- Deveria. Ele é internacional. Além disso, com as compras o senhor ganha pontos e participa do nosso programa de fidelidade. A cada cem mil pontos, o senhor ganha um maravilhoso abridor de latas.
- Eu não quero abridor de latas.
- Mas ele é fantástico, senhor.
- Senhorita. Tudo o que eu quero é cancelar o meu cartão.
- Certo, senhor. E qual é o motivo?
- Eu já disse qual é o motivo.
- Mas ele não é válido, senhor.
- AAAAAAAHHHHHHHH
- Não grite, senhor. O fato de eu ser apenas uma atendente de telemarketing não lhe dá o direito de gritar comigo.
- ...
- Senhor? Senhor? Desligou. Valeska, esses clientes estão cada vez piores.