A rua continuava a mesma da sua infância, as ruas arborizadas, os casarões e seus jardins, o tradicional colégio Loyola e seus irrequietos alunos, o museu Abílio Barreto. O engraçado é que nada disso a atraia.
Era apenas uma criança e percorria, junto com a mãe, as padarias, os pequenos mercados e as lojinhas procurando comprar tudo que estava na lista de madame Elvira, e depois, de madame Cristina.
Isso havia ficado em sua memória, o cheiro dos pães quentinhos, as velas coloridas, o perfume de madame Elvira, a dor de madame Cristina.
O carro parou na frente da mansão branca, que hoje era azul. Mas Vivian nunca iria conseguir se referir a ela de outra forma. Relutou muito em retornar ali, só que não podia negar o último pedido de sua mãe. O de terminar com tudo aquilo.
A corretora da imobiliária abriu os portões rapidamente, estava em pé, ereta, vestida com um comportado terninho marrom, com sapatos igualmente marrons. Um sorriso profissional nos lábios, preparada para convencer.
“Guarde sua lábia” pensou Vivian quando o motorista abriu a porta. Madame Elvira ficaria surpresa em saber que a negrinha que corria pelo jardim agora era uma importante empresária. Sorriu com essa idéia de que agora, ela estaria se revirando no tumulo, tão preconceituosa, jamais iria admitir que alguém de classe inferior fosse dona de sua casa.
– Boa tarde Senhora Mendes. Sou Mariana, a corretora.
– Muito prazer, Mariana.
– O seu marido não veio junto?
– Ele e as crianças estão em Londres – sorriu e explicou – eles já estão com mais de vinte anos, mas ainda acho que eles são crianças. As minhas crianças.
– Claro. Creio que toda mãe é assim. Ainda não sou mãe, mas a minha está sempre na volta.
– Isso significa que você é uma boa filha, Mariana. – Olhou em sua volta – Mas o que você tem a me dizer sobre a casa?
– É uma casa excelente. Como a senhora pode ver, o jardim está muito bem cuidado. Seguindo esse caminho – indicou com a mão o caminho em mármore carrara – e dobrando a esquerda, é possível chegar aos fundos onde estão à piscina, o jardim de inverno e um salão de festa...
– Piscina? – interrompeu Vivian – A casa passou por reformas? – Vivian se lembrava que o doutor Adriano tinha medo de água, por essa razão, nunca construiu uma piscina.
– Só na parte de fora. O último dono, apesar de não morar nela, achou que algumas melhorias no fundo da casa, que não tinha nada, iriam valoriza-la.
– Hum... alguém morou aqui, depois da família Ribeiro Melo.
– Sabe que não. Isso é uma curiosidade sobre a casa. Todos os que compram, a reformam, mas nunca chegam a morar.
– Realmente curioso.
– À direita temos a garagem, cabem até sete carros cobertos e mais uns cinco descobertos. A senhora prefere começar pela parte externa ou quer olhar a parte interna?
– Quero olhar a parte interna.
A corretora abriu a porta principal, ainda era original, Vivian pode observar que a moça teve que colocar um pouco mais de força para empurra-la.
– Como à senhora sabe, ela já vem mobiliada. Quase todos os móveis são originais. Posso tirar os lençóis se a senhora desejar. A casa foi toda limpa, então não tem o risco de levantar poeira.
– Nas proximidades, a senhora irá encontrar salão de beleza, padarias, restaurantes, antiquários, supermercados, agências bancárias... e mesmo com tudo isso, é um bairro extremamente tranqüilo. Ter uma casa aqui é um sonho de consumo para qualquer morador de Belo Horizonte.
“E apesar disso, ninguém habita essa mansão” pensou Vivian.
Caminharam por toda a casa, até chegarem ao quarto principal. Com cuidado Vivian se aproximou da parede no qual a cama ficava encostada. Era o mesmo papel de parede. Ninguém o tocara.
“Só você pode acabar com isso Vivian” as palavras de sua mãe vieram em sua cabeça.
– Vou ficar com ela. – disse se virando para a corretora.
– Que ótimo. A senhora fez um excelente negócio.
–Tenho certeza que sim. – puxou uma cadeira e abriu a bolsa – Conforme o Cândido, dando o sinal, eu já poderia ficar na casa. O acordo persiste?
– Claro. O Cândido, meu gerente, já havia me passado essa particularidade.
– Bom. – Vivian começou a preencher o cheque. – Não gostaria de ficar em um lugar impessoal, como um hotel, tendo comprado uma casa dessas.
– Claro – a jovem concordou rapidamente – vou providenciar os papéis o mais rápido possível.
Despediram-se. Vivian indicou a garagem para o seu primo Antônio, que estava fazendo o papel de motorista, mas na verdade iria ajuda-la em sua missão. Eles precisavam acha-las, todas elas.
No outro dia, doutor Adriano a encontrou morta na grande cama de casal que compartilhavam. Fazia apenas um mês que seu jovem filho Carlos havia morrido e o homem ficou numa tristeza profunda.
Doutor Adriano se recuperou apenas um ano depois, quando encontrou Cristina, uma jovem viúva que estava em Belo Horizonte a passeio. O inesperado aconteceu e eles se apaixonaram. E todos sabiam que esse amor era verdadeiro, pois ambos eram muito ricos. Viveram cinco anos na casa, mas o casamento de desgastava com os abortos anuais de madame Cristina.
Quando tinha dez anos, a mãe sentou Vivian em um dos bancos da cozinha e disse: “Querida, não se assuste com o meu cabelo quando eu voltar da conversa que terei com madame Cristina e doutor Adriano. E vá arrumando as nossas malas”.
Quando sua mãe voltou, seus cabelos estavam totalmente brancos. Uma semana depois, todos se mudaram para Recife. Lá, madame Cristina teve três filhos, mas doutor Adriano só viveu cinco anos, a cada filho que nascia, ele definhava mais. Nenhum médico detectou a doença que o afligia.
Mas madame Cristina recompensou sua mãe, que negou qualquer coisa pra ela e pediu estudo para a filha. Assim, Vivian foi para boas escolas e acabou administrando os negócios de madame Cristina junto com os filhos dela. Não era empregada, era sócia.
E essa era a razão de Catarina, sua mãe, achar que, depois de toda a sorte que tiveram, deviam isso. Acabar com toda a maldade de Elvira.
– Hora de verificar se mamãe estava certa. – disse para Antônio.
Vivian pegou uma maleta marrom. Com calma, entrou na casa e se dirigiu até as escadas. A cada degrau que subia, sentia o coração se apertar. Tomada de uma ansiedade súbita, acelerou seus passos e entrou novamente no quarto principal. Foi até uma pequena mesa de madeira e colocou a maleta sobre ela. Abriu-a e de lá tirou um livro com uma capa verde desbotada e dois vidros transparentes, um, com líquido amarelo, e outro, com um líquido vermelho. Antônio entrou no quarto, em suas mãos, uma vassoura e um balde com água. Vivian colocou parte do líquido amarelo no balde, e esse tornou a água amarelada. Arredaram a cama e retiraram o papel de parede ficando apenas uma tintura branca, onde o líquido vermelho foi atirado. Ao entrar em contado com a cor branca, ele se tornou rosado e a seguinte frase surgiu:
“Qwas l i sol u mwl ddu”
– Bingo. – Antônio exclamou.
– Me alcance a máquina fotográfica. – Vivian pediu sem tirar os olhos da parede. Sentiu Antônio colocar o equipamento em sua mão. Com cuidado, ajustou o zoom e pressionou o botão para capturar a frase. Depois, conferiu a nitidez dos símbolos.
– Pode fazer. – pediu.
Após ouvir suas palavras, Antônio molhou a vassoura no balde e começou a lavar a parede. Depois de seca, Vivian atirou novamente o líquido vermelho, e nada apareceu.
Desceram até o escritório, Viviam ligou o notebook e nele conectou a máquina fotográfica. Com a foto ampliada na tela, abriu o livro com cuidado. Folheou as páginas, procurando cada símbolo, e aos poucos, a frase começou a lhe fazer sentido. Quando terminou, sentiu o corpo gelado. Olhou para Antônio e pronunciou em voz alta:
“Mortos são os gerados em minha cama.”