domingo, 5 de setembro de 2010

Capítulo Seis

Duque de Caxias, Rio de Janeiro

Doca sentou em uma calçada e ficou pensando no que iria fazer. Não podia ficar muito tempo em Duque de Caixas, Bagão tinha conhecidos ali. Na sua imaginação, já circulavam cartazes dizendo:
“Procura-se Eduardo Oliveira, 10 anos, pele morena, cabelos e olhos castanhos, magro, 1,45 de altura. Paga-se recompensa. Trazer vivo ou morto”.

“Preciso sair daqui e ir para um lugar sem sol. A mãe sempre dizia que eu era bem branquinho, como ela e meu pai, mas a nossa pele havia ficado morena de tanto sol. Se eu ficar branco, ninguém mais me reconhece.”

Foi nesse momento que Doca viu um pequeno caminhão azul, muito velho, carregando vários móveis. Um homem se despedia e entrava em um opala. Dentro do carro, uma mulher e duas crianças. Estavam se mudando.

Doca se aproximou com cuidado do motorista, um homem de cabelos e bigodes brancos, que colocava uma camiseta.

– Tio, pra onde o senhor está indo?– perguntou Doca

O homem virou assustado, procurando a voz. Era um homem alto e olhando para baixo, encontrou Doca, fazendo a cara mais inocente do mundo.

– Estou indo pra Resende, menino. – respondeu – Por que quer saber?

Rezende era quase fora do Rio de Janeiro, pelo que Doca lembrava das aulas de geografia, e subitamente decidiu: ia para São Paulo.

– O senhor me dá uma carona? – pediu.

– Mas a tua mãe vai ficar preocupada contigo.

– Não, foi ela quem pediu. – mentiu Doca – Ela está muito doente e meu pai foi trabalhar em uma construção em São Paulo. Não conseguimos falar com ele, tenho apenas o endereço e não tenho dinheiro para pagar um ônibus até lá. Por favor, nos ajude.

O homem ficou pensativo, como se através dos olhos de Doca, pudesse identificar se o menino estava mentindo ou não. Mas as lágrimas que ameaçavam desabar o convenceram.

– Está bem. Entre pelo lado do carona, moleque.

Doca sorriu e correu para o outro lado, com medo do motorista mudar de idéia. Sentou, colocou a pequena sacola e a bolsa da sua mãe no chão, antes de ajustar o cinto de segurança.

No rádio, tocava uma música sertaneja. No painel, várias fotos e adesivos.

– Meu nome é Antônio, e o seu?

– Eduardo.

– Meu neto mais novo se chama Eduardo. O que a sua mãe tem?

– Ela sofreu um acidente. Está com o corpo todo queimado.

– Que horror. Ela estava no ônibus que o caminhão bateu?

– Sim.

– Nossa. Desejo boa sorte pra vocês. A maioria morreu naquele acidente, não?

– Sim.

Antônio acabou mudando de assunto, viu que o menino se encolhia cada vez mais e sua voz se tornava chorosa. Coitado, não deveria ter ninguém mais no mundo. Então começou a contar as travessuras dos seus netos. Três horas depois, chegavam a Rezende.

– Pode me largar aqui na Via Dutra mesmo. – falou Doca.

– Você tem certeza?

– Claro – sorriu Doca – Vou até um posto ver se consigo carona com um caminhoneiro.

Antônio parou o caminhão e mexeu na carteira.

– Não é muito – disse dando quinze reais a Doca – Mas pelo menos você pode comer alguma coisa.

Doca desceu do caminhão, e o viu andar mais um pouco, dobrar em uma rua e sumir. Com cuidado, caminhou meia-hora pelo acostamento da rodovia, até achar um posto. Já era quase noite e logo os caminhoneiros iriam parar para jantar e dormir. Avistou na lateral um banheiro, lá dentro havia além de pia e vaso, chuveiros. Ajeitou suas coisas e tomou um banho rápido. Quando desligou os chuveiro, notou que os seus pés estavam mais claros. Observando as pias, pegou uma pasta de dente esquecida. Usando os próprios dedos, fez uma limpeza rápida.

Saiu do banheiro olhando para os lados, caminhou lentamente até avistar uma grande árvore. Subiu e se ajeitou em um dos galhos mais próximos. Mexeu na bolsa da mãe, encontrou uma maça e um pequeno pacote de biscoitos. Comeu a maça e guardou o pacote para mais tarde. Cansado. Dormiu sentado no galho com as costas grudadas ao tronco.

Eram cinco da manhã quando acordou com o ronco do motor de um grande caminhão. Saiu rapidamente da árvore e foi até o estacionamento, onde umas dez carretas estavam paradas. Os quatro primeiros motoristas que abordou lhe negaram carona. O último, um homem na casa dos quarenta, com uma barriga imensa, chinelo de dedo e uma aparência de sujo o analisou de cima a baixo.

– Pra onde você vai?

– São Paulo. – Respondeu Doca

– Então entra. Vou até Pindamonhangaba.

Doca entrou, mas sentiu uma estranha aflição. Desejou pegar a pedra, mas isso ia chamar a atenção. Buscou os biscoitos no fundo da bolsa da mãe.

– Bolsa de mulher, hein?! – ao olhar os biscoitos – Isso não é café. Cê ta muito magro moleque. Espera um pouco. – o homem desceu e abriu uma pequena caixa que ficava acoplada ao caminhão. – Tome – disse ao retornar, oferecendo um pão com margarina.

Doca comeu com gosto e descobriu no caminho que Zé, como era conhecido, não era uma má pessoa. Sua aparência se devia ao cansaço, pois fazia três dias que viajava direto e só conseguira dormir algumas horas na noite anterior.

– Mas... como você agüenta? – perguntou Doca, curioso.

– Tomo umas coisas.

– Não é perigoso?

– Perigoso é... mas tenho quatro filhos pra sustentar. Preciso de dinheiro e quanto mais tempo dirigir, mais dinheiro eu ganho.

– E é muito dinheiro?

– Pior que não. Quem ganha dinheiro é o patrão que nos paga. O bom é carregar carro. Mas é um mercado mais concorrido.

Doca ficou sabendo os tipos de carga e o tempo de cada uma. Achou a vida de caminhoneiro interessante, embora fosse muito corrida. Tão corrida quanto a estrada, e quando se deu conta, Zé já estava parando na beira da estrada para Doca descer.

– Menino, dificilmente você vai conseguir carona agora. Vai caminhando até o segundo posto que encontrar nas proximidades de Taubaté, lá, sempre tem uns camaradas legais que param para almoçar.

Doca ganhou mais dez reais e agradeceu. Ajeitou a sacola nas costas, atravessou a bolsa da sua mãe no corpo e iniciou a caminhada pelo acostamento. Percebeu que não era o único que fazia aquele caminho. Outras pessoas o acompanhavam, alguns a pé, outros de bicicleta. Carros e caminhões passavam levantando poeira, alguns soltando fumaça. Nesse momento, idosos e crianças tossiam.

Doca caminhou os dezesseis quilômetros que separavam Pindamonhangaba de Taubaté. Era quase hora do almoço quando viu um carro destruído. Estavam retirando-o debaixo de um ônibus.

– Foi culpa do carro, seu guarda – dizia uma senhora baixinha – eu vi quando ele tentou ultrapassar um outro carro e entrou embaixo desse ônibus.

– Aonde a senhora mora? – perguntou o policial rodoviário anotando tudo em um papel.

– Ali – disse à senhora apontado para uma rua – na Vila Nossa Senhora das Graças.

Doca foi passando pelas pessoas até ver um menino que deveria ter a sua idade.

– Oi, aqui é Taubaté?

– É sim. Você estava no ônibus? – perguntou o menino.

– Não – foi à resposta de Doca que seguiu em frente, desviando dos curiosos. Passou por um posto parecido com o que havia parado no dia anterior, caminhou mais um pouco e encontrou o segundo.

Doca entrou na lanchonete e constatou que um prato de comida era barato. “Cinco conto uma la-minuta” pensou “não como a dois dias, posso comer um prato assim.”

Pediu seu almoço e comeu com vontade. A atendente, com pena, pegou um copo da água e colocou ao lado do prato. Doca sorriu para a bonita moça e pensou o que ela fazia ali? Mas se corrigiu, agora sabia que ninguém escolhia os seus caminhos. Terminou o almoço e pediu carona aos poucos caminhoneiros que ali se encontravam. Mas todos lhe negaram. E Doca voltou a caminhar pela Via Dutra.

“Dizia aquela revista no colégio que a Via Dutra recebeu esse nome por causa do presidente Dutra” se distraia Doca enquanto colocava uma camisa na cabeça para proteger do sol forte “que foi inaugurada em janeiro de 1951, começa no trevo das margaridas no Rio e termina no Tietê em São Paulo, e tem quatrocentos e dois quilômetros. Quantos quilômetros será que eu já percorri? E quantos faltam para eu chegar a São Paulo se tiver que ir caminhando?”, Doca se questionava enquanto observava o mato que o acompanhava pela rodovia.

“Será que Bagão morreu? Se ele morreu, ninguém vai querer me matar. Não...”Doca sacudiu a cabeça “Rico viria atrás de mim. Ele nunca ia me perdoar por ter matado o namorado dele. E caminhando nesse sol eu nunca vou ficar branco.” Observou os braços cada vez mais escuros. “Falando em branco, o que a professora havia falado sobre os bandeirantes?”

Doca caminhou quase quatro horas, misturando pensamentos de sua vida pessoal, com leituras de revista e assuntos aprendidos na escola. No final da tarde, chegou a Caçapava. Parou em uma lanchonete e pediu para usar o banheiro. Abriu a torneira, lavou o rosto e tomou água. Não sentia mais os seus pés. Ao mesmo tempo, lhe parecia que poderia andar pelo resto da vida.

Ao chegar na rua observou uma Kombi que dizia “Faço Frete”. O homem se preparava para sair quando Doca se aproximou.

– Oi. Aonde você vai? – o homem deu um pulo ao ouvir a voz de Doca.

– Que susto. Vou fazer uma entrega perto do de São Paulo. Por que?

– São Paulo capital?

– Claro.

– Você pode me dar uma carona?

O homem olhou na volta, como se procurasse alguém.

– Não tem nenhum adulto com você?

– Não.

Ele coçou a cabeça, como se pensasse por um momento.

– Está bem. Vamos. – Disse num tom, como se concluísse que um menino daquele tamanho não faria nenhum estrago.
Era noite quando Doca desceu da Kombi. Ao longe. Observava as luzes no aeroporto de São Paulo e por cima de sua cabeça os aviões passavam. Sempre tivera curiosidade de andar num. Distraído, tirou a camisa que ainda estava amarrada sua cabeça, e essa escapou de sua mão, sendo levado pelo vento para a pista contrária. Sem pensar, atravessou a pista correndo para busca-la. Abaixou-se para pegá-la no chão. Quando se levantou e olhou para frente, viu dois faróis muito perto e gritou.

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