domingo, 27 de junho de 2010

Capítulo 2

Rio de Janeiro, favela Porto Seco

“Sacode a bundinha, dá uma reboladinha, desce e vai... vai...vai...vai”

Doca estava encolhido entre as paredes de madeira podre, espiando pelas frestas as meninas dançando o funk da moda. Só de calcinha, elas se exibiam para o Bagão, traficante e dono da área. Embora todos soubessem que Bagão era viado, ele insistia em se fazer de homem. Pelo menos seus inimigos acreditavam.

Depois de quinze minutos acocado, Doca sentiu o pé esquerdo formigar e decidiu sair dali. Se ele fosse achado, Bagão faria ele descer... e a descida não seria tão indolor quanto das cachorras que se exibiam.

Desceu as escadas devagar e se dirigiu a uma mata próxima. Olhou para o céu, a mãe deveria demorar mais umas duas horas para chegar. Era dia de fazer faxina na zona sul.

A criançada jogava bola nos espaços entre os barracos, os olheiros observavam o movimento da polícia e os comerciantes ficavam de olhos nos pequenos, para evitar os furtos. Mas isso não era visível depois das duas grandes árvores.

Doca, nascido Eduardo, sentia que ali era um mundo à parte. Durante o dia ninguém ia ali, mas a noite ficava lotado de jovens casais populando ainda mais a favela e de filhinhos de papai procurando algo para “viajar”.

Depois de cinco minutos de caminhada, havia um riacho. Uma água estranhamente cristalina que oferecia um banho melhor que chuveiro. Doca tirou a roupa e mergulhou. Lembrou da história que a professora havia contado de manhã e se imaginou um mergulhador procurando tesouros. Começou a procurar pedras... achou tampinhas, um brinco de pena e camisinha. Foi se aproximando de um buraco, que formava uma falsa caverna, naquele ponto a água era mais baixa e Doca foi obrigado a ficar de pé. No primeiro passo com o pé direito, sentiu uma dor no dedão. Pegou a pedra que o machucou, tinha o estranho formato de triângulo e com a luz, tinha um reflexo amarelo escuro e rosado.

Sentado na beira da caverna, ficou observando o seu pequeno tesouro. “Hoje é o meu dia de sorte” pensou, com um sorriso nos lábios “e sei que hoje tudo vai mudar”.

O sol já desaparecia no horizonte quando Doca voltou até o barraco. E preparava para dar uma desculpa esfarrapada, mas a mãe ainda não havia chegado. Pegou os cadernos e começou a fazer o tema de casa.

– Oi meu bem.

– Mãe, que demora – Doca se assustou ao ver o estado da mãe. Ela estava toda suja, no rosto uma mancha roxa. – O que houve?

– Nada meu filho. – tentou sorrir, enquanto limpava uma lágrima de seus olhos – Desculpe, não consegui trazer nada de comer. Mas acho que tem um pouco de farinha ainda.

– Mãe. O que aconteceu?

– Nada meu filho. Você é uma criança, não se preocupe com isso.

– Eu já tenho dez anos mãe. Quem fez isso?

– A polícia nos confundiu com os bandidos... nada de mais.

– Como nada de mais, mãe?

– Somos favelados filho. Mas se você estudar, vai virar doutor. E tudo isso vai mudar. Vamos sair daqui.

– Devíamos falar com o Bagão.

– Não. O Bagão é bandido. Você não vai ganhar nada além de um tiro no meio da testa com ele.

– Como o meu pai?

– Isso. Como o Josias. Mas tenha calma Doca, amanhã vou ver uma vaga em que a família disponibiliza uma casa. Se eles e aceitarem, vamos nos mudar para perto da praia.

– Eu vou poder ir junto?

– Sim... nossa vida vai começar a mudar. Você não vai acabar como o Josias nem ser ignorante como eu.

– Você não é uma ignorante mãe. Você é uma grande mulher. – Doca se aproximou, abraçando a mãe com cuidado.

– E você é um grande filho. – Jussara sussurrou, engolindo a vontade de chorar.

Doca ficou um bom tempo abraçado na mãe. Gostaria de bater no policial que a machucara. Mas tudo ia dar certo, e segurando firmemente a pedra com as duas mãos, rezou a noite inteira para que a mãe conseguisse o novo emprego.

Jussara olhava o filho dormir e torcia os dedos em desespero. Bagão queria seu filho como ajudante nos pontos de drogas. Chegara a bater nela, cobrando a dívida de Josias, que morreu em um confronto com a polícia. Os três quilos de cocaína não valiam a vida de seu filho e a sua última chance era a entrevista de emprego no outro dia.

Não tinha ninguém. Josias havia sido abandonado pela mãe, e contrariando a vida na favela, conseguiu ultrapassar a casa dos cinqüenta anos. Ela tinha apenas dezessete. Ele a engravidou e morreu. Sua mãe tentou ajudar, mas não agüentou quando seu quinto irmão morreu nas mãos do tráfico. Agora era ela e o Eduardo.

A luz que atravessava as frestas de madeira indicava a hora de levantar. Jussara amarrou os longos cabelos negros, vestiu sua melhor blusa e a calça jeans. Quando pensou em chamar Doca, encontrou um par de olhos castanhos a observando. Calado, ele se aproximou e pegou a sua mão, colocou algo gelado na palma dessa, onde Jussara encontrou uma estranha pedra em formato triangular.

– De onde você tirou isso Doca? – perguntou.

– Do riacho. – Jussara levantou as sobrancelhas. – Juro mãe. Achei lá. Perto da caverna.

– Doca mentir e roubar são coisas feias e não vão de levar a lugar nenhum. – disse com voz calma, mas preocupada.

– Eu sei mãe. E não tô fazendo nada disso. – Doca segurou o choro antes de continuar – Juro pelo pai.

– Tudo bem querido – Jussara abraçou Doca – eu acredito em você. Perdoa a mãe, essa entrevista tá me deixando nervosa.

– Leva a pedra junto mãe. Vai te dar sorte.

Jussara guardou a pedra na bolsa e deu um último beijo no filho. Chegou quinze minutos antes da hora marcada. Era uma bela casa de dois andares, com piscina e muito espaço.

– Bom dia! – disse uma jovem na porta – Você deve ser a Jussara.

– Sou eu mesmo.

– Por favor, entre. Venha até a sala para conversarmos.

O tapete era tão grosso que abafava os passos. Jussara notou um gato, de pêlo avermelhado e olhos muito verdes, espiá-la debaixo da escada. Mas não pode observar muito, pois sua anfitriã já sentava em uma grande poltrona bege.

– Sente-se Jussara, você me foi muito bem recomendada pela Carla.

– Bondade dela senhora. A Casa da Dona Carla era muito fácil de ser mantida.

– Não me chame de senhora. – e surpresa sorriu – Desculpe, não me apresentei, me chamo Vanessa. – E apontando para a casa – Apesar de grande, não temos filhos, então o serviço é bem tranqüilo.

– E de bicho, a senhora só tem o gato?

– Me chame de Vanessa ou você. Não temos bicho. Você deve ter visto o gato da vizinha. Mas não tenho nada contra crianças ou animais. Só não temos tempo, nem eu ou meu marido.

– A Dona Carla me disse que é para morar aqui?

– Sim. Temos um mini-apartamento grudado na cozinha. Tem uma pequena sala, um quarto e um banheiro. A cozinha você pode usar a nossa mesmo.

– Não sei se a Dona Carla falou que eu tenho um filho...

– Sei sim. E não tem problema. Exceto nos eventos de negócio do meu marido, seu filho poderá aproveitar a piscina, o pátio e tudo mais.

Jussara saiu com tudo acertado. Foi para a parada listando tudo o que iria levar. No outro dia, ela e Doca estariam em uma casa de verdade. Dentro do ônibus começou a se despedir de cada vizinho. Não iria contar a ninguém o seu novo endereço. Bagão não teria notícia deles. Com um suspiro apertou a bolsa e lembrou da pedra. Ela realmente lhe dera sorte. Foi no momento em que a beijou que escutou a freada.

Doca aguardava ansiosamente o retorno da mãe e por isso não notou a movimentação de ambulâncias. Estava quase roendo as unhas dos pés quando Dona Eva entrou no barraco com os olhos inchados.

O motorista de um caminhão carregado de toras de madeira havia perdido o controle. Da sua mãe, só havia sobrado a bolsa e a pedra. Todos falavam em velório, tragédia e o futuro do menino quando Bagão chegou.

– Não se preocupe Eduardo. – disse sério – Sempre fui muito amigo do Josias e da Jussara e vou cuidar de ti. – completou passando a mão no cabelo de Doca.

Ninguém ousou discutir. As poucas roupas de Doca foram colocadas em uma sacola com o símbolo do Flamengo. Dona Eva ficou encarregada de fazer os preparativos para o velório de Jussara e Bagão levou Doca para o seu barraco.

Durante três horas Doca assistiu a negociações de drogas, armas, licença para negócios e reclamações de prostitutas. Quando todos se foram, Bagão se dirigiu a ele:

– Mermão. Já que você vai depender de mim, vai fazer umas coisinhas.

– Você quer que eu venda drogas na escola?

– Não. Nesse ponto a sua mãe tinha razão. Você é esperto. Você vai estudar de dia e me agradar à noite.

Dizendo isso Bagão tirou as calças e encarando Doca, sorriu maliciosamente.

– Me chupa.

Doca ficou paralisado. Sabia que nem o pai nem a mãe iriam querer aquilo. E não era por estar sozinho que se entregaria a uma vida fácil assim.

– Não. Eu vou embora.

– Você não vai a lugar nenhum moleque – Bagão pegou Doca pelos cabelos – você vai ficar aqui, a favela é a sua casa e agora eu vou cuidar de você e você vai dar prazer pra mim. – dizendo isso, empurrou a cabeça de Doca abaixo de sua cintura.

Doca nunca soube dizer como aquela faca foi parar na sua mão. Mas foi rápido em passa-la na genitália de Bagão, que arregalou os olhos quando viu seu pênis cair inerte no chão, enquanto urrava como um animal.

Enquanto Bagão rolava no chão, espalhando sangue no jornal antigo que servia de piso, Doca pegou sua sacola de roupa e a bolsa da mãe e saiu correndo. Não demorou muito para os capangas de Bagão saírem atrás, mas Doca já estava chegando a caverna.

Passou a noite ali, escondido. Quando o sol nasceu, ele começou a buscar uma saída. Sua única certeza era que tinha que ir embora do Rio. Seguiria a primeira estrada que encontrasse. E depois de horas de caminhada, chegou a Duque de Caxias.

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