domingo, 13 de março de 2011

Capítulo Vinte e Seis

Belo Horizonte, aeroporto

– Alguém vem nos buscar? – Lúcia olhava para frente, enquanto caminhava pelo corredor, até a porta de saída do avião.
– Um homem chamando Antônio vem nos buscar.
No saguão, viram um homem alto, segurando uma placa com o nome de João.
– Boa noite. Eu sou o João.
– Boa noite. Sou Antônio, primo de Vivian, e vim busca-los. – o homem sorriu e os levou até o estacionamento. Entraram no carro e Doca ficou olhando pela janela.
– Vocês já conheciam Belo Horizonte?
– Não. – João respondeu. – Mas é uma bonita cidade.
– Eu também não. – Lúcia falou, enquanto observava as ruas. – Aliás, até pouco tempo atrás só conhecia Porto Alegre e Tramandaí.
– E eu, o Rio de Janeiro. – Doca comentou.
– Vocês trouxeram a pedra? – Antônio perguntou sério.
– Está nessa bolsa. – João levantou – não somos louco de deixa-la com outros.
– Como assim? - Antônio que havia parado no sinal, olhou para João.
– Ela mata as pessoas. – Doca respondeu seco – Matou a minha mãe.
Antônio arregalou os olhos. Encarou João, como se procurasse uma confirmação.
– É verdade. – Lúcia completou, ao notar que Antônio não acreditava nas palavras de Doca. – Essa pedra tira a vida de pessoas inocentes.
– Achei que ela só fizesse mal aos herdeiros.
– Não. – Lúcia colocou uma mexa do cabelo para trás da orelha, em um gesto nervoso. – Ela faz mal para todos os que a tocam.
– O que Vivian tem haver com a pedra? – João se manifestou
– É melhor que ela mesmo explique.

Entraram em um bairro de casas grandes e carros importados. Pararam em frente a uma garagem e os portões se abriram. O carro parou na porta da mansão e todos desceram. Nas escadas de acesso a casa, uma senhora os esperava.
– Os filhos de Irina. – Sorriu e e abriu os braços. – Por favor, entrem. Eu sou Vivian.
– Eu sou o João. Esses são Doca e Lúcia.
Vivan abraçou e beijou cada um com carinho. Doca aceitou o afeto de bom grado. João se sentiu constrangido e Lúcia ficou desconfiada. Acompanhando o gesto que Vivian fez com as mãos, todos entraram na casa. O interior estava todo iluminado, dando a impressão de opulência e ao mesmo tempo de aconchego.
Estavam se dirigindo a sala principal, quando Doca olhou para dentro de uma das portas que se encontrava aberta, parando repentinamente.
– É aqui. – Doca reconheceu, puxando João e Lúcia para dentro da sala. – Foi aqui que as pedras se uniram. Olhe as cortinas, Lúcia.
– Esta é a antiga sala particular de madame Elvira. – Vivian observou, se aproximando do garoto. – O que foi aqui dentro?
– É aqui que a bruxa uniu as pedras.
– Uniu?
– Cada um de nós encontrou um pedaço da pedra – João explicou – conforme nos encontramos, ela foi se juntando. – abriu o fecho da bolsa que carregava e tirou o retângulo de dentro – agora ela é uma só.
– É ela. – Vivian pegou a pedra e observou. Em sua superfície, os mesmos símbolos. – Ela encontrou vocês e os fez se encontrarem? – João concordou com um gesto de cabeça. – É surpreendente.
– A senhora tem idéia do por que?
– Tenho. Irina teve três filhos. Vocês são os três descendentes. Nenhum com filhos. Conforme as magias antigas, vocês são as três chaves para encerrar essa maldição.
– E a senhora entra aonde, nessa história? – João a encarava.
– Eu sou a tradutora. O que me faz pensar que sou uma espécie de portal. Afinal, também tenho o sangue de Irina e de Elvira.
– Quem é Elvira? – Doca perguntou curioso por ouvir aquele nome novamente.
– É a bruxa que você viu, meu filho.
– Você é irmã da minha avó?
– Não. Sou sobrinha. Minha mãe era meia-irmã de Irina.
– Por conseqüência, meia-irmã de Elvira. – Lúcia olhou para as próprias unhas e lembrou-se do seu irmão. – Essa maldição tem a ver com ciúmes?
– De certa forma sim, Lúcia. Mas venham. – Disse, indicando a porta para que os três saíssem do local. – Vamos até a sala principal.
Caminharam em silêncio o curto trajeto. A sala indicada era grande e iluminada. Ao contrário da outra, todas as janelas tinham as cortinas afastadas, permitindo que se avistasse o jardim.
– Sentem-se. – Vivian falou. – Aqui na mesa tem alguns petiscos, depois da conversa, iremos sair para jantar. – Esperou todos se acomodarem. – Acho melhor explicar tudo para vocês. – Pegou um copo d’água e tomou um gole da bebida antes de continuar. – A história começou com um homem chamado Francisco Soares Ribeiro. Ele era casado com Rosane, mãe de Elvira, mas teve um caso com duas empregadas: Serafina e Elza. Serafina deu luz a Catarina, minha mãe e Elza a Irina, que vocês conhecem bem.
– Eu não conheço essa tal de Irina. – Doca resmungou.
– Não?
– Doca é filho de Josias. – João explicou. – O filho que minha avó abandonou.
– Irina abandonou um filho? – Vivian estava surpresa.
– Sim.
– Meu Deus. Espero que isso não interfira na quebra do feitiço.
– Existe realmente um feitiço?
– Infelizmente sim, Lúcia. Elvira sentia um ódio muito grande dos herdeiros bastardos de seu pai. E isso só aumentou quanto Irina se aproximou de seu único filho: Carlos.
– Sobrinho dela? – João arregalou os olhos – Minha avó paquerou o próprio sobrinho?
– Ela casou com o próprio sobrinho.
– Ela não sabia?
– Sabia, Doca. – João respondeu – Ela casou por vingança.
– Exato. – Vivian concordou. – Ela casou por vingança, para recuperar o que acreditava ser seu por direito.
– Mas Elvira sabia. – Lúcia esfregou as mãos.
– Ela sabia. E deu essa pedra de presente para Irina. – Vivian se levantou para colocar um pouco de chá em sua xícara – Mas me parece que Irina acabou se apaixonando por Carlos e ficou grávida dele. Mas a pedra abortou esse sonho e Irina colocou a pedra na pasta de trabalho de Carlos.
– E ele morreu. – Doca afirmou.
– E ele morreu. – Vivian repetiu. – Irina devolveu a pedra para Elvira e foi embora de Belo Horizonte. Um mês depois, Elvira morreu.
– De tristeza?
– Não, Lúcia. De maldade, pura e simples. Ela transformou essa casa em seu objeto para o mal. Todas as paredes continham maldições. Para o marido, para futuros moradores, para a minha mãe... mas não havia nenhum para vocês.
– Por que havia a pedra.
– Exato, João. A pedra é a maldição de vocês. Para que todos os mortos descansem em paz e vocês busquem a felicidade aqui, precisamos quebrar esse feitiço.
– E como iremos quebrar? Ela quer nos matar!
– Ela não pode nos matar, Doca. – Lúcia tentou tranqüiliza-lo. – Ela está morta.
– Ela está morta, mas a sua maldade não, Lúcia. – Pela primeira vez, a voz de João tremeu. – Parece que você não escutou o que a dona Vivian disse.
– Está com medo de fantasma, João? – Lúcia provocou.
– João está certo, Lúcia. Apesar do corpo estar morto, seu espírito ainda nos ronda. Para quebrar, precisamos decifrar o que está escrito na pedra.
– E quando o faremos?
– Pode ser agora. Vamos até o escritório.
– Me explica uma coisa... – João começou, enquanto seguiam Vivian - se você também tem o mesmo sangue, porque não recebeu um pedaço da pedra?
– Acho que minha mãe nunca ofereceu nenhum obstáculo, já Irina matou o único filho dela. Talvez isso me livre dos males da pedra.
– Olho por olho – Foi a única idéia que ocorreu a João.
– Exato. – Odete abriu a porta – Sentem-se. – Foi até uma mesa de madeira escura e ligou o computador que ali estava. Pegou um bloco e uma caneta. – Vamos lá. – Começou a digitar no teclado.
Em silêncio, observaram Vivian abrir um livro antigo, comparar os símbolos e fazer anotações no pequeno bloco. Esperaram ela decifrar o código. Doca nem se mexia, já Lúcia enrolava um cacho imaginário e João mexia os dedos.
– Estranho... – Vivian olhou para a frase que tinha escrito e leu em voz alta. – “Tudo retornará quando eles estiverem no único lugar que me traz paz” e do outro lado “A paz está onde me sinto feliz”.
– Onde Elvira se sentia feliz? – João perguntou, colocando as mãos no bolso.
– Não tenho idéia... mas no diário deve ter alguma pista.
– Ela tem um diário?
– Sim. Vocês me dão um minuto? – Vivian não esperou resposta e saiu.
– Estou com medo, João.
– Não se preocupe, Doca. Mais um pouco, e você vai estar enfrentando provas de matemática. Ainda vou ouvir você dizer que isso tudo foi fichinha.
– Eu só não entendo por que nós, e não os nossos pais. Ou o meu irmão.
– Aqui está. – Vivian entrou no escritório – Vamos ver se achamos alguma coisa.
– Senhora... por que nós? – Lúcia perguntou.
– Bom... seguindo a lógica das antigas línguas, nós temos o cavalheiro, aqui representado pelo João, a força da terra, pela Lúcia e você, Doca, é a inocência.
– Mas por que Lúcia é à força da terra? – O menino olhava para Lúcia com curiosidade.
– Por que ela é mulher. Conforme as culturas mais antigas, a mulher é a verdadeira força, pois ela é a única capaz de gerar vida, portanto, a responsável em dar continuidade à espécie.
– Um pensamento feminista, Doca. – O comentário de João descontraiu o clima pesado e provou reação imediata de Lúcia.
– Não seja machista, João. Você sabe que a senhora Vivian tem razão.
– Já que eu tenho razão, vamos deixar de discutir e procurar o lugar de paz da madame Elvira.
Atentos, folhearam as páginas até encontrarem uma anotação da ainda jovem Elvira:
“Posso ter 19 ou 99, mas hoje tenho consciência de que apenas o meu lar original será o meu lugar de paz. Vejo essa movimentação, as damas da sociedade esforçando-se para ser jovens e belas. Mas nada concede força, beleza e liberdade como os ares da fazenda do meu pai.”
– Onde fica essa fazenda? – João perguntou
– Próxima. – Vivian respondeu, lembrando-se do lugar ao qual o parágrafo se referia. – Quando pequena íamos lá no verão.
– Vamos?
– Mas é noite, Lúcia. – Doca argumentou.
– Creio que não haverá problemas. – Vivian falou, com uma voz cansada. – Vamos acabar com isso de uma vez. Quero ir para casa. – Foi até a porta e chamou – Antônio!
– Sim, Vivian.
– Prepare o carro. Vamos na antiga fazenda dos Ribeiros.

Seguiram pelas ruas, primeiro passaram pelo movimento dos jovens em buscas de festa, depois encontraram o silêncio. Casas escuras, ruas mal-iluminadas e finalmente uma estrada. Quarenta minutos depois, pararam em um antigo portão, que se encontrava aberto.
– Parece abandonado. – Lúcia comentou
– Está abandonado. – Antônio afirmou – Estranho nenhum sem terra ter invadido.
– Acho que o doutor Adriano nunca cuidou dessa fazenda. Na verdade, ela foi esquecida por todos.
– Quem era o doutor Adriano?
– Era o marido de madame Elvira, Doca.
– E por que a senhora a chama de madame?
– Força do hábito. Eu era filha da empregada.
– Ah, tá.
– Olhem. – João que estava no banco da frente, ao lado de Antônio, apontou – Ali está a casa.
Antônio parou perto da porta. Todos desceram e ficaram olhando para a casa que um dia deveria ter sido muito bonita e imponente, mas hoje tinha a aparência de que qualquer vento a derrubaria.
João pegou uma lanterna com Antônio, subiu os quatro degraus da frente e colocou a mão na fechadura. Essa cedeu e a porta se abriu. Todos se olharam e concordando em silêncio, entraram. Os móveis estavam todos lá, só que enfeitados por teias de aranhas. Eles escutavam a movimentação dos ratos, que corriam como que fugindo deles.
– Vamos até a segunda sala, ali tem um corredor que dá acesso aos quartos.
João caminhou em direção a segunda sala, e conforme Vivian havia indicado, avistou o corredor. Começou a seguir por ele, haviam pelo menos seis portas. Pensou em se virar e perguntar, mas sentiu as mãos de Vivian lhe empurrarem as costas.
Várias pinturas decoravam as paredes. Paisagens e pessoas indicavam como haviam sido os tempos antigos na fazenda. Quando chegavam no final do corredor, Vivian lhe puxou a camisa e apontou para a porta que estava à direita.
Ao abrirem a porta, encontraram um ambiente infantil. Bonecas antigas, com as roupas roídas, estavam sentadas em antigas cadeiras de madeira. O guarda-roupa, que um dia foi branco, tinha detalhes delicados na madeira esculpida. Antigos livros de história encontravam-se atirados num canto.
Inconsciente, começaram a procurar por algo que não sabiam exatamente o que era. Lúcia deu um pulo ao abrir as portas do guarda-roupa e ver duas baratas saltarem de lá. Trancou um grito, mas depois de recuperada, pode observar os vestidos cheios de rendas e babados.
Vivian mexeu na cômoda. Peças íntimas se encontravam ali, junto com aranhas e traças. Quase todas brancas, hoje apresentavam uma cor amarelada.
João mexeu na cama. Nas duas gavetas da parte de baixo havia muitos jogos. O colchão cheio de pontos pretos, indicava um condomínio de pulgas e João cogitou que talvez gatos dormissem ali.
Antônio levantou sua lanterna para o teto, mas a única coisa que encontrou foi um delicado e antigo lustre e várias teias de aranha.
Doca, sentindo-se perdido, foi até o canto atrás da porta e removeu uma pequena caixa de madeira, quando a levantou, notou que não havia nada. Mas ao tocar no chão, sentiu que havia um desviou ali Tateando com cuidado, levantou a madeira do piso e descobriu um esconderijo.
– Gente. Tem alguma coisa aqui.
João se aproximou e colocou a luz da lanterna. Era um espaço limpo, com pequenas caixas e peças. Retiraram tudo e encontraram jóias, diários, bonecas e livros.
– Os tesouros de Elvira. – Vivian comentou.
– E tudo está intacto. Olhe esse lenço – Lúcia levantou a peça – está branco e cheiroso, como se tivesse sido lavado hoje.
– O lugar de paz de Elvira? – João indagou, enquanto folheava o diário.
– Creio que sim. – Lúcia olhou para João, e notou que o observavam. – O diário diz alguma coisa?
– Aparentemente não... fala das coisas do cotidiano de uma menina... hei, esperem um pouco – João apertou os olhos para enxergar melhor – “Papai me fez prometer que eu nunca vou abandonar a nossa casa. Acho que foi por causa do meu irmão, que caiu do cavalo e não voltou mais. Ninguém me conta o que aconteceu com ele. Mas jurei ao papai que sempre estarei aqui”.
– Acho que não é isso. Deixe-me procurar. – disse Lúcia
João estendeu os diários e Lúcia folheou os outros até parar em um. Lendo de trás para diante.
– Encontrei. “Quando eu tinha sete anos, meu pai me fez prometer que cuidaria da casa para sempre. E assim o farei. Hoje estou indo para a casa do meu esposo, ao qual sei, será minha também. Mas também tenho certeza que o meu lugar de paz, sempre será aqui. Por isso deixo todos os meus pequenos tesouros guardados aqui. Pois mesmo quando morrer, será aqui que minha alma virá descansar em paz.”.
– Um feitiço em língua nativa. – Vivian murmurou – Essa casa é realmente importante para ela. Creio que isso fez os estranhos se manterem afastados.
– O que devemos fazer? – João perguntou.
– Vamos guardar tudo. E junto à pedra. Quando fizermos isso, a alma de madame Elvira finalmente retornará para o seu lugar de paz.

Conforme indicado, tudo foi recolocado no pequeno espaço e em cima, a pedra retangular. Fecharam o acesso e colocaram a caixa, como estava antes. Um vento movimentou as antigas cortinas e sem pensar, todos saíram rapidamente da casa. Antônio saiu na frente e abriu as portas do carro. Lúcia, seguida de Doca entraram no carro e João ajudou Vivian a se sentar ao lado deles. Em seguida. Sentou-se no banco do carona na frente.
Antônio arrancou o carro, mas antes tiveram tempo de ver a casa ficar toda iluminada. Passaram pelos portões e logo em seguida ouviram o barulho deles se fechando. Durante dez minutos, todos ficaram mudos, como que revivendo a cena que haviam acabado de presenciar. Olhando pela janela, Vivian notou que o céu estava estrelado e com o coração batendo forte, agradeceu para a mais brilhante o fato de ter finalizado a sua missão.
– Está tudo acabado. – Vivian suspirou aliviada.
– Acho que não. – Doca se abaixou e pegou algo que havia começado a bater em seus pés. Com as mãos tremendo e a voz entrecortada, levantou o objeto e declarou: – A pedra voltou.
Lúcia arregalou os olhos e João se virou para trás como se não acreditasse no que estava vendo.
– Senhora... – João começou – tem algo escrito nas laterais da pedra.
– Acenda a luz, Antônio.
Vivian pegou a pedra e observou os símbolos. Como havia cometido esse erro. Quando pegara a pedra pela primeira vez, havia sentido a ondulação, mas havia achado que era a própria pedra.
– Lúcia, pegue a minha bolsa. Dentro está o diário de madame Elvira.
– Aqui está.
– Pegue um papel e uma caneta... anote o que eu for traduzindo.
– Deixe-me ver...APE...N...AS...A...MOR...TE...TRAS – o carro deu um pulo, fazendo o livro escorregar das mãos de Vivian – ai, o que foi isso Antônio?
– Um pequeno solavanco. Entramos na rodovia agora.
– Tudo bem... deixe-me continuar – pegou o livro que havia caído sobre suas pernas - onde eu estava?
– Aqui, Doca apontou para o símbolo que indica o A.
– Certo: A...P...AZ.
– “Apenas a morte trás a paz” – Lúcia se adiantou.
– Quem trouxe esse gato pro carro? – Antônio gritou
– Cuidado com o caminhão. – Doca retrucou ainda mais alto.

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