domingo, 21 de novembro de 2010

Capítulo Dezesseis

São Paulo, Morumbi

Doca acordou com uma batida na porta. Olhou no relógio e já eram dez horas. “Essa cama me faz dormir demais.” Pensou, enquanto se levantava e caminhava tropeçando nas próprias pernas.
Abriu a porta e uma moça loira, com o uniforme cinza do hotel, lhe sorriu.

– Bom dia, Doca. Você não deveria abrir a porta assim. – disse enquanto empurrava um carrinho para dentro do flat. – Meu nome é Teresa. E eu trouxe o seu café da manhã.
– Bom dia. – Doca respondeu sem jeito. – Não estou acostumado a perguntar quem é.
– Então é bom você aprender. Mesmo aqui, é perigoso ir abrindo as portas. Temos uma rotatividade grande de pessoas estranhas circulando aqui dentro.

Doca concordou com um leve acesso de cabeça. Seus olhos brilharam ao verem os pães e sentiu uma grande fome.

– Bom, está tudo aqui. Se precisar de alguma coisa, basta pegar o telefone e me ligar, certo?
– Certo. E, obrigada Teresa.
– De nada. Ao meio-dia venho trazer o seu almoço.

Doca ligou a TV. Enquanto assistia um desenho japonês, comia com vontade as bolachas de chocolate. Quando achou que a barriga estava bem cheia, sentou-se numa das poltronas e ali ficou.
Antes do meio-dia tomou um banho. Aproveitou e pegou um pouco do gel de cabelo de João e colocou no seu. Olhando-se no espelho, brincou:

– E ai, não tô bonito? – O menino refletido no espelho sorriu.

Voltou ao quarto e abriu a bolsa que era da sua mãe, de dentro da carteira, tirou uma foto em que os dois estavam abraçados. Ele era pequeno, deveria ter um ou dois anos. E sua mãe, muito jovem, parecia muito mais a sua irmã do que a sua mãe.

– E ai, mãe? Não fico legal de bacana. – suspirou encarando a figura da foto – Gostaria que você estivesse aqui. Tenho certeza que ia gostar do João. Apesar de ter dinheiro e usar roupas de playboy, é um cara legal.
Uma batida na porta lhe tirou dos devaneios, devia ser Teresa. Quando ia abrir a porta se lembrou.

– Quem é?
– É o almoço. – Ouviu uma risada. – É a Teresa, Doca.

Doca abriu a porta ligeiro. Ela empurrava outro carrinho. Ajeitou a mesa e colocou um prato com arroz, bife, ovo e batata-frita. Um prato extra com mais um bife e mais batata. E mouse de chocolate.

– Uau. Adoro batata-frita. – Doca exclamou.
– Então, divirta-se.

Doca sentiu-se um rei. Nunca tivera um dia desses: comer, assistir TV, dormir. Não fazia nada, era apenas servido. E assim, assistiu TV até o lanche da tarde. Depois de comer o enorme sanduíche, não resistiu e acabou por dormir na poltrona.

Quando abriu os olhos, estava com frio. Com surpresa, constatou que não estava mais no flat de João e sim numa sala espaçosa. Os móveis eram antigos, de madeira. Os quadros, que estavam pendurados nas paredes, retratavam pessoas com roupas antigas, parecidas com as fotos que apareciam nos livros de história.

– Como ousa invadir a minha casa? – uma voz áspera perguntou.

Doca emudeceu. Olhou para a mulher a sua frente: um tanto velha, com um longo vestido, seus olhos escuros refletiam algo que fez o seu coração se apertar. Não sabia onde estava, nem quem era aquela criatura. Tentou mexer os dedos e não conseguiu. Encontrava-se paralisado.

– O que você pensa que é, sua imundice? – ela perguntou, encarando-o – Você é bizarro, uma anomalia da natureza.

“Isso é um sonho” pensou Doca “culpa daquele filme de terror que assisti com o João. Daqui a pouco a Teresa vai chegar e bater na porta, e eu vou estar feito um babaca, me borrando todo.”

– Ninguém vai chegar – disse a mulher lendo os seus pensamentos – e agora, você está em minhas mãos.

Ouviu-se um miado. Doca conseguiu mexer a cabeça e viu o mesmo gato da rodovia. “Nunca mais como tanto pão. Bem que o João me disse que fazia mal comer tanto e dormir”.
– Cale a boca. – a mulher ralhou com o gato – Não existe nada que você possa fazer.

O gato caminhou vagarosamente, indo para trás da poltrona de Doca. Esse pensou em se levantar, mas o olhar da mulher, que mais parecia uma bruxa, o impediu. Ela ergueu uma mão e a bolsa de sua mãe veio pelo ar. Vagarosamente, a pedra foi retirada. Logo em seguida, a bolsa caiu no chão.

– Hei. Não jogue a bolsa no chão.
– Por que não? – ela riu – Já joguei a sua mãe em um caixão, jogar sua bolsa no chão não é nada.
– Mentirosa. Minha mãe morreu em um acidente. – Doca queria que sua voz soasse com força, mas o que ouviu foi uma fina e chorosa criança.
– É verdade. Acidentes acontecem. – dizendo isso, ela ergueu a outra mão e a outra pedra veio. Murmurando palavras estranhas, as pedras se encaixaram. – E agora, teremos outro acidente.
– Pare com isso, Elvira. – Doca ouviu uma voz atrás de si. – Ele é apenas uma criança, não tem culpa de nada.
– Todos carregam a culpa. E ele é o que melhor simboliza. Quer algo melhor que um bastardo para descender de uma vagabunda?
– Eu não sou um bastardo. – Doca reclamou.
– Mas seu pai era.
– O seu problema é comigo. Deixe-os em paz.
– Eles só terão paz, quando eu estiver em paz. Feche a boca, maldita, que o seu anjo agora irá para o céu.

Doca arregalou os olhos quando a mulher avançou em sua direção, nesse momento, o gato pulou na poltrona, Doca sentiu suas unhas ficarem em um dos seus braços, antes de ele dar um novo pulo.

– AAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHH. – Doca gritou.
– Calma, Doca. Sou eu, João.
Doca olhou João, e sem pensar, o abraçou. João, preocupado, retribuiu o abraço do menino. Ele tremia, estava muito assustado.
– O que houve, Doca? O que aconteceu? – João falou enquanto o afastava de leve. Notou sangue no seu braço direito. – Doca o seu braço está sangrando. Quem fez isso com você?

Sem conseguir falar, Doca simplesmente apontou para o chão. João acompanhou a direção e viu as pedras próximas à televisão.

– O que as pedras estão fazendo ali, Doca?
– Ela as pegou. – Doca sussurrou sem desviar os olhos do objeto.
– Ela quem? – João estranhou.

Mas Doca não respondia. Sem outra opção, João se encaminhou até as pedras, e ao pegar uma, a outra veio junto. Estavam coladas.

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