domingo, 10 de outubro de 2010

Capítulo 10

São Paulo, Via Dutra

João não pensou. Simplesmente virou toda a direção para a direita. Ainda teve tempo de ver um par de olhos brilhantes antes de frear com força. Sentiu o corpo ir para frente e ser empurrado de volta ao acento pelo cinto de segurança. “Que merda. Só me faltava isso” pensou , no momento em que um grande caminhão passou buzinando. Mais por reflexo do que por preocupação, olhou para a pista procurando um corpo. Nada. “Estou vendo coisas” resmungou ao notar um corpo estendido no acostamento, a poucos metros do seu próprio carro.

Doca jamais conseguiria explicar o que aconteceu, lembrava-se apenas de que estava pegando a sua camiseta quando viu os faróis em sua direção. Virou a cabeça para a esquerda e viu um gato de olhos verdes. Sem pensar muito, foi em sua direção, sentiu uma pequena batida e agora, quando abria os olhos, via os mesmos faróis e o chão. “Será que eu morri?”

– Puta que pariu. Meu carro! – resmungou um homem alto, de camisa pólo azul, calças sociais, olhando para a lataria do carro esporte.

– Qual é, mermão?! Quem deveria estar falando palavrão sou eu, estendido aqui no chão.
– O que você estava fazendo no meio de uma pista... de uma pista de BR, seu imbecil? – pela primeira vez João olhou realmente em direção a voz. O que viu foi um menino pequeno, sozinho, caído no chão com o braço sangrando.

Quando virou a direção, João acreditava piamente estar se livrando do louco da rodovia e deixando a responsabilidade para o caminhoneiro. Olhou em volta. Não havia nenhum adulto por perto, nem testemunha. Com a velocidade que o caminhão passou, com certeza não havia anotado a sua placa. Por que não seguir viagem e deixar o garoto ali, sozinho?

Doca estava com medo. Suas costas doíam, aliás, tudo doía. Havia raspado um dos braços e batido a cabeça. A bolsa de sua mãe estava aberta com tudo jogado na volta. Sua sacola com roupas estava no meio do mato. Pensou em levantar, mas resolveu esperar o homem que olhava ir embora.

João começou a caminhar lentamente em direção ao garoto. “Não posso ser tão covarde. Pego ele, largo em um hospital público e deixo uma grana para ele pegar um táxi. Tudo resolvido”. Olhou embaixo do pneu para ver se tinha atropelado o gato também, mas não havia nada. Quando levantou a cabeça viu uma conhecida pedra triangular no chão. Instintivamente, voltou até o carro e pegou o seu casaco. A que estava o chão era outra.

“Impossível, é muita coincidência”. Um trovão iluminou o céu e sem pensar, João começou a recolher as coisas do menino.

– Hei, não mexe ai não. – reclamou Doca – Isso é meu e nenhum 171 vai levar.
– Vou levar sim, essas coisas e você até um hospital. – gritou João – Você tem idéia do que fez? Tem?

– Desculpa. Eu me distraí com os aviões.

– Da próxima vez vá até o aeroporto para se distrair com eles e não no meio da Via Dutra. – suspirou – Você consegue se levantar sozinho?

Doca tentou se mexer, mas não conseguiu ter força suficiente.
– Acho que estou com câimbra na perna direita. Não consigo mexer sem sentir dor.

– Tudo bem. Não se mexa. Além dessa bolsa, você tinha mais alguma coisa?

– Uma sacola do Flamengo com as minhas roupas.
João foi até o mato próximo ao acostamento e logo encontrou.

– Essa mochila?

– Sim.

João recolheu tudo e colocou no banco da frente. Levantou o seu banco e abriu bem a porta. Foi até Doca e sem uma palavra, o pegou no colo. Caminhou rapidamente até o carro e o deitou no banco de trás.

– Vamos para um hospital. Procure não se mexer, ok?

– Ok. – respondeu Doca fechando os olhos. O carro tinha um cheiro bom e aquele banco era mais confortável que sua própria cama.

Se fosse honesto, iria admitir que nunca havia tido uma cama de verdade. Sua mãe ia conseguir uma em seu novo emprego. Mas Deus não quis.
– Como você se chama? – João o trouxe para a realidade.

– Hein?!

– Seu nome, qual o seu nome?

– Eduardo. Mas todos me chamam de Doca.

– Muito bem, Doca. Eu me chamo João. – olhando Doca pelo retrovisor perguntou - E os seus pais?

– Não tenho pais. Estou sozinho.

– Você fala chiado. É do Rio?

– Sou.

– E como você chegou até aqui?

– Pegando carona, caminhando...

– Nossa... você deveria estar desesperado!

– Estava.

– Você veio caminhando?

– Quando não conseguia carona...

Doca emudeceu e João resolveu prestar atenção no trânsito. Sem saber a razão resolveu levar o garoto para um hospital no Morumbi. Sabia que ia ficar com ele em sua casa. Nunca havia acreditado em coincidências, mas desta vez, o destino parecia estar lhe pregando uma peça.
Conforme andavam, as ruas se tornavam mais iluminadas, prédios mais altos surgiam. “Estou entrando em outro mundo” pensou Doca, enquanto lia o nome da rua: Avenida Albert Einstein.
João estacionou o carro em um prédio grande, com uma entrada envidraçada.

– Espere um pouco. – disse antes de sair.

Logo depois, João apareceu com um rapaz todo de branco que o retirou com cuidado do carro e o colocou na maca.

– O senhor não deveria ter removido ele da estrada – recriminou o mesmo rapaz – se ele sofreu algum dano mais sério na coluna, isso pode ter sido fatal.

– Como ele estava sentindo câimbra na perna, achei que não havia afetado a coluna. – disse João levantando os ombros.

– O Senhor é médico?

– Não, e você é enfermeiro, não?

Na entrada, Doca descobriu o lugar onde estava: Hospital Albert Einstein. Enquanto lia o letreiro, a maca foi em uma direção e João em outra. “Minhas coisas” foi à última coisa que Doca pensou antes de entrar em uma sala gelada.

– Boa noite, Senhor – sorriu a recepcionista – Enquanto o menino é levado para o raio X, pode preencher essa ficha?

– Sinto muito, mas sei apenas o primeiro nome do menino: Eduardo.

– Mas.. quem vai pagar o atendimento?

– Acredito que isso não seja uma preocupação, quando se trata do filho de Julios Galdos?

– Não, com certeza não, senhor – nervosa a moça guardou a ficha – Vamos esperar o menino sair dos exames para pegar os seus dados.

João saiu e foi sentar na sala de espera. Pelo menos isso o seu pai havia deixado. Atendimento vitalício após polpudas doações. Para seu alívio, pelo menos em um lugar, o seu nome ainda tinha poder.

Uma hora depois, Doca apareceu com o braço esquerdo enfaixado, alguns curativos no rosto e nas pernas. Havia perdido um dos seus chinelos e por isso caminhava puxando uma das pernas.
– Tudo bem? – perguntou para o médico que o trazia.

– Tudo em ordem com o rapazinho aqui. Ele teve uma luxação no braço esquerdo, mas em duas semanas estará pronto para uma nova aventura.

– Menos radical, eu espero. – disse João

– Com certeza, não é Doca?

– Sim, Dr. Luís. – pela primeira vez Doca sorriu – Muito obrigado.

– Nessa sacola – o médico apontou para o pequeno embrulho que Doca carregava com cuidado – estão os remédios que ele deve tomar. Aqui está a receita. – entregou na mão de João para que ele pudesse ver – esses dois primeiros ele deve tomar de oito em oito horas na primeira semana. Na segunda, muda para esse terceiro que é de doze em doze.

– Certo.

Doca prestou a atenção. Sabia que João iria larga-lo na primeira esquina. Mas não se importava. Já estava em São Paulo e agora podia começar a cuidar de sua própria vida.

– Obrigada, Doutor. – João apertou a mão do médico. – Agora tenho que levar esse garoto para o interrogatório da recepcionista.

– Boa sorte e cuide-se, Doca. Não quero ver você aqui tão cedo – piscou – a menos que você sinta dor nesse braço.


Despediram-se do médico e caminharam em silêncio até a recepção. A moça olhou para as roupas de Doca com um misto de pena e nojo, mas não ousou falar nada na presença de João.
– Muito bem. Qual o seu nome completo? – ela começou

– Eduardo Oliveira.

– Nome da sua mãe?
– Jussara Oliveira.

– Do seu pai?

– Josias.

– Oliveira?

– Não. Só Josias.

– Qual o sobrenome do seu pai?

– Ele não tem. – a recepcionista arregalou os olhos – ele não era registrado. – explicou com um olhar resignado.

Josias é morador da favela Porto Seco, no Rio de Janeiro. Sua busca foi extremamente difícil, pois ele não foi registrado. Andou por várias casas, seu último paradeiro antes da favela, foi um orfanato de irmãs carmelitas. Vive sozinho e é traficante de drogas.”

As palavras escritas no relatório da agência de detetives surgiram como um raio na mente de João. Era mais do que coincidência. Como dizia a sua mãe “algo grandioso iria acontecer”.

– Qual a sua idade? – a recepcionista continuava com a sua bateria de perguntas

– 10.

– Onde estão os seus pais?

– Mortos. – Doca respondeu com uma naturalidade que fez a recepcionista pigarrear antes da próxima pergunta.

– E onde você mora?

Doca pensou. Não tinha mais endereço. Mas ela não precisava saber, provavelmente nunca mais se veriam.

– Porto Seco.
– Onde é Porto Seco?

– No Rio de Janeiro.

– E a rua, o número?
– Quadra 12, barraco 15.

– Barraco? – a moça estava cada vez mais surpresa.

– Coloca o meu endereço – disse João – ele vai para a minha casa mesmo.

– Vai?

– Vou? Perguntaram Doca e a recepcionista.

– Vai. Você não pode encerrar isso? Ele já foi atendido, o Doutor Luís já deve ter uma ficha dele. Qualquer coisa, vocês ligam para esse número – estendeu um cartão.

– Certo. – ela respondeu, grampeando o cartão junto à ficha – Vocês estão cansados. Podem ir.

– Eu vou mesmo para a sua casa? Perguntou Doca a caminho do carro.

– Vai. – respondeu João, enquanto procurava a chave no bolso da calça. Apertou um botão e com um barulho, as portas destravaram – Agora você pode sentar. Entre no lado do caroneiro.
Doca correu para o outro lado. Quando abriu a porta, viu João colocar suas coisas no banco traseiro.

– Não esqueça de colocar o cinto. - João ligou o carro, com os olhos no retrovisor, colocou o carro lentamente em movimento.

Doca viu João pegar a carteira e entregar uma nota para o rapaz que liberava a saída dos carros. Ao sair do estacionamento, dobraram a direita. Conforme passavam pelas ruas, era possível observar as pessoas com seus passos apresados, ou esperando em paradas de ônibus. Prédios iluminavam a cidade como se fosse dia.

– É nessa rua. – Avisou João, trazendo Doca de volta a realidade.

Doca começou a procurar o nome, para saber onde se encontrava. Avenida Giovanni Gronchi informava a placa azul. Em frente a um prédio, onde se lia The Residence Flat, João apertou um botão em uma pequena caixa preta e um grande portão se abriu. Chegaram ao sub-solo, onde João estacionou o seu carro.

– Você mora aqui?

– Está impressionado? Se você visse a casa da família então. – sorriu João.

– É porque você não conheceu a casa da minha família.

João o encaminhou até os elevadores e subiram até o décimo terceiro andar. Ao abrir a porta. Doca se deparou com um lugar que misturava luxo e escuridão. Sua mãe sempre dizia que os ricos não sabiam iluminar suas vidas. Doca sempre a contrariava, dizendo que um dia ela seria muito rica e a sua casa, a mais iluminada de todas.

Enquanto Doca tomava banho, João separou uma roupa limpa para o menino e pediu um lanche. Quando entrou na sala, Doca se deparou com um prato de massa e refrigerante. Por um momento, pensou na razão de não sentir medo daquele homem. Mas algo lhe dizia que podia confiar naquele engomado.

– Então, como está?

– Delicioso. – respondeu Doca de boca cheia, observando João comer uma comida esquisita. – Isso é bom?

– Isso é sushi. Outro dia você experimenta. Já viveu aventuras demais para um único dia.

– Onde eu vou dormir?

– O sofá vira uma cama. É nele que você vai dormir.

– Tá bom.

– Não se preocupe. Ele é confortável.

– Não estou nem um pouco preocupado. – Doca deu de ombros. – Imagino que ele dê de dez a zero na minha ex-cama.

– O que a sua mãe fazia?

– Limpava a casa de gente cheia dos contos como você.

– E o seu pai?

– Fazia dois oito um. – respondeu enviando outra garfada de massa na boca.
– Dois oito o que?

– Ele era traficante – terminou de engolir e completou – dos bons, viveu até os cinqüenta, coisa que neguinho nenhum consegue. Mas um língua nervosa acabou com ele.

– Língua nervosa? Sei...

– Um dedo-duro. Depois que mataram o meu pai, ele saiu no pinote, e apareceu morto logo depois.

– Me diz uma coisa Doca. Onde você conseguiu aquela pedra triangular?

– É isso que você quer? – Doca levantou num saldo, derrubando molho no piso. – Ela é minha, você não vai tira-la de mim?

– Calma rapaz. – João disse enquanto se levantava lentamente e pegava a bolsa que Doca carregava. Atirou para ele que pegou e abriu ligeiro, derrubando a bolsa enquanto pegava a pedra com a mão boa. – O que você diria – continuou, enquanto pegava o seu próprio casaco e colocava a mão no bolso – se eu te dissesse que tenho outra parecida? – completou enquanto mostrava a pedra triangular em sua mão.

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