domingo, 17 de outubro de 2010

Capítulo Onze

Belo Horizonte, Cidade Jardim

– Meu Deus – exclamou Antônio – a mulher era realmente má.

– Madame Elvira? Você ainda não viu nada. – espreguiçou-se Vivian – Amanhã vamos remover os armários na cozinha. – disse desligando o notebook.

– Na cozinha? Mas porque Vivian?

– Quero descobrir que maldição à velha bruxa jogou na minha mãe para ela morrer daquele jeito.

– Você é quem sabe. Aonde iremos dormir?

– Na casa dos empregados.

– Você está brincando? Com a quantidade de quartos confortáveis que tem nessa casa?

– Você quer descobrir a razão de ninguém morar aqui?

– Você acha que ela jogou alguma praga?

– Depois do que acabamos de ler, você tem coragem de dormir aqui?

– Pensando por esse prisma... não.

Vivian riu. Toda vez que Antônio começava a falar difícil era porque as suas pernas tremiam. Desligou todas as luzes, deixando apenas as da rua acessa. Ao abrir a porta da casa dos empregados, velhas lembranças tomaram conta do seu coração. Caminhou até a cozinha e encostada em uma das mesas, colocou os braços em sua volta. “Mãe que falta você me faz.”

– Onde fica o banheiro? – gritou Antônio.

– Você está na sala? – respondeu enquanto enxugava as lágrimas.

– Sim.

– Está vendo o corredor?

– Estou.

– Primeira porta a direita.


Seguiu em direção a sala, passou a mão pelas paredes, com um suspiro, caminhou em direção ao corredor e se dirigiu a última porta. Ao abrir, estava tudo lá. Sentiu-se com dez anos, fugindo do banho enquanto a mãe ainda atendia os patrões.

– Onde irei dormir?

– No quarto do Miguel.

– Miguel?

– O antigo motorista da família.

– Vocês moravam com um homem aqui dentro?

– Miguel tinha mais de sessenta anos e era um senhor adorável. Doutor Adriano tinha pena dele. Só o chamava para trajetos curtos. Morreu um ano depois de seu Carlos e Madame Elvira.
– Ele não chegou a se mudar então.

– Não. – fazendo um leve gesto de negação com a cabeça, para afastar os pensamentos, Vivian mudou de assunto – Pegue as nossas malas no carro, por favor? Na preta estão lençóis e toalhas limpas. Assim podemos tomar um banho e arrumar nossas camas.


Vivian tomou um banho quente e demorado, por um momento imaginou a mãe lhe esperando, para trançar os longos cabelos. Mas nem a sua mãe, nem os cabelos estavam mais lá. Colocou a longa camisola e um roupão felpudo. Quando saiu do banheiro, sentiu um cheiro gostoso vindo da cozinha. Sorriu, antecipando o prazer de uma refeição feita por Antônio, que era um excelente cozinheiro.

Foram dormir cedo. Ambos estavam cansados da movimentação. Após se aconchegar nas cobertas, Vivian sentiu o cheiro de sua mãe, fechou os olhos e dormiu com ela em seus pensamentos.

Um barulho forte ecoava da casa. Vivian sentiu que braços quentes a protegiam. O que estava acontecendo? Notou que seus pés estavam sem as meias e sua camisola não era mais tão longa e quente. Abriu os olhos e encontrou os de sua mãe. Observou o seu rosto, emoldurado pelos cabelos pretos soltos, sua boca estava cerrada e a testa franzida. Vivian olhou para as suas próprias mãos. Tinha cinco anos outra vez.

– Venha. – disse a mãe estendendo a mão – Você precisa ver isso.

Vivian estendeu a mão e foi puxada para fora da cama. Catarina a levou até a janela e se abaixando, puxou de leve as últimas persianas.

– Olhe!

A casa estava toda iluminada, as venezianas das janelas abriam e fechavam, batendo com força nas paredes.

– Não entendo. Eles não estão em casa mamãe! Por que você não fechou as janelas e apagou as luzes – e apontando para a casa – ela está toda iluminada.

– Não está querida. Olhe para a janela do canto esquerdo.

– A janela do quarto de madame Elvira? – Vivian olhou novamente – É a única janela fechada.

– Sim, a janela do quarto que você limpou. É você que irá libertar essa casa, Vivian. Não esqueça disso, nem quando se sentir cansada. Você tem uma missão e não pode abandona-la. – Catarina se levantou e pegou Vivian no colo – Agora, volte para a cama. Você terá um dia agitado amanhã.
Com cuidado, Catarina acomodou Vivian no lado direito da cama e colocou um urso em seu travesseiro. Cantando músicas antigas, mexeu nos cabelos da menina até que essa pegasse no sono. A única coisa que se lembrava é da mãe lhe dizendo que a amava.


A forte luz do sol acordou Vivian, que continuava deitada do lado direito da cama com um urso a lhe fazer companhia. Instintivamente tocou na camisola e notou que era a mesma grande e felpuda. Olhou para as mãos, elas tinham sessenta anos outra vez. E suas meias estavam, em seus pés. Mas a sua mãe também estivera.

Levantou e olhou para a janela, as persianas estavam levantadas. Eram seis e meia da manhã, hora em que sua mãe deixava o sol entrar para ela acordar e ir ao colégio.

– Não se preocupe, mãe. Não esqueci da minha missão.

Vivian sabia que tinha que ser rápida. Não tinha muito tempo para encontrar os herdeiros da maldição. Mas hoje ela iria cuidar da casa, começando pela cozinha.


Os armários em madeira escura estavam por toda a cozinha e eram pesados. Vivian e Antônio passaram o dia retirando louças de dentro deles, desmontando armários e atirando o líquido amarelo nas paredes e nada. Só faltava a peça que servia de depósito de alimentos. Não havia nada lá. Apenas a madeira das prateleiras. Antônio começou a mexer, quando notou que, em um dos lados, elas eram mais frouxas. Começou retirar uma a uma, até a parede se mostrar por inteiro.

– Aqui está ela. – disse sem olhar para Vivian.

Sem responder, Vivian atirou o líquido amarelo e as palavras apareceram:

“Skas duzlios le bys a humis D l nuzPas a tulil”

Vivian repetiu o procedimento do dia anterior com mais dificuldade. Suas mãos tremiam ao ver os símbolos que marcaram parte da vida de sua mãe. Demorou o dobro do tempo para decifra-los. Cada significado encontrado era uma punhalada no seu coração.
– Negra Maldita seu corpo irá pagar por suas palavras de traição – Vivian suspirou – isso explica tudo Antônio.

– A cegueira da sua mãe não foi algo natural?

– Não, meu primo. Quando minha mãe avisou madame Cristina que eles deveriam se mudar, seu cabelo branqueou.

– Por isso a tia Catarina não comentou nada quando o doutor Adriano começou a definhar?

– A princípio ela não sabia. Quando nasceu o Jonas, o caçula, ela teve certeza. Mas teve medo. Eu era uma adolescente e ela temia o que podia acontecer com ela. Mas madame Cristina também percebeu e parou de engravidar. Infelizmente, era tarde demais para doutor Adriano.
– Então a perda nos movimentos da mão esquerda de sua mãe foi natural?

– Não. Quando os médicos do doutor Adriano anunciaram sua morte, madame Cristina começou a providenciar o enterro dele em Recife mesmo, uma hora depois dela fazer o acerto com a funerária, Cezar, o primogênito, ficou com quarenta graus de febre. Minha mãe não se agüentou e pediu para madame Cristina enterra-lo em Belo Horizonte, no jazigo comprado por madame Elvira. Mesmo com lágrimas, madame Cristina o fez, depois de tudo acertado, a febre do menino foi embora, mas minha mãe não conseguia mais mexer com a mão esquerda.

– E foi assim que eu acabei nascendo perto de vocês. – Antônio brincou, tentando aliviar a atmosfera pesada.

– Sim. Mamãe não conseguia mais realizar as tarefas domésticas, assim madame a colocou como uma administradora da casa e a encarregou de contratar outra pessoal. Mamãe chamou tia Madalena, que um ano depois se casava com o jardineiro Elias e dois anos depois dava a luz a um menino chamado Antônio. – concluiu com um leve sorriso.

– Esse seu formoso assistente. – Antônio gracejou, sentindo-se satisfeito por desfazer um pouco da tensão de Vivian.

– É verdade. Obrigada, Antônio. Sei que é complicado deixar a família e os negócios pra trás, mas sem você eu não conseguiria.

– Não diga bobagens. Você é minha família também. Além do mais, Miriam pode cuidar da loja.

Encerrados os trabalhos daquele dia. Vivian deitou a cabeça no travesseiro. “Estou muito velha pra isso” suspirou. O sono logo veio, assim como a presença forte e quente de sua mãe.

– Acorde e veja – ela lhe disse.

Novamente a casa estava toda iluminada, com as janelas batendo. Exceto o quarto de madame Elvira e a cozinha.

– Amanhã será mais fácil mamãe. E o trabalho será mais rápido.

– Você não precisa ter cuidado com os bens materiais. Seu tempo é pouco. Várias vidas dependem disso.

Vivian com o olhar fixo na casa, apenas concordou com a cabeça. Apesar do corpo de criança, sua cabeça permanecia com sessenta anos, e o seu conhecimento de vida dizia que nesse ponto sua mãe estava errada. Se quebrasse qualquer coisa antes de libertar todas as peças, daria mais força ao espírito e as maldições de madame Elvira.


Quando amanheceu, Vivian despertou com um sentimento de urgência. Desejou ter os quarenta anos de Antônio, mas agradeceu a Deus poder contar com sua ajuda. Foi até a janela onde se via toda à parte de trás da casa.

“O dia terá que ser definitivamente longo” pensou.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá! É bom ter você por aqui. Em breve o seu comentário será postado. Dúvidas e sugestões são sempre bem recebidos.