domingo, 31 de outubro de 2010

Capítulo 13

São Paulo, Morumbi

– Sinistro – Doca arregalou os olhos – elas são quase iguais!

– Me empresta um pouco a sua pedra. – João pediu.

Sem receio, Doca entregou. João caminhou até a mesa e as movimentou, até que elas pareceram se encaixar.

– Parecem peças de um quebra cabeça.

– E são. Olhe – João apontou para as pedras – falta uma peça para completar a figura.

– E com quem deve estar?
– Algo me diz que em Porto Alegre.

– Por que em Porto Alegre?

– Teoricamente, é o local onde mora a família de um tio meu.

– Você já viu ele com a pedra?

– Eu não o conheço.

– E por que você acha que está com ele?

– Porque a primeira está com você.
– Não entendi.

– Espere um pouco. – João foi até um armário e abriu uma gaveta, de onde tirou um envelope. – Você sabe ler?

– Claro que sei. – Doca respondeu ofendido. – Estou na quarta série, mermão.
– Desculpe. Minha mãe, antes de morrer, contratou uma agência de detetives para procurar seus irmãos. Um deles era ilegítimo, e morava no Rio de Janeiro.

– E aí? Ainda não entendi aonde eu entro?

– Ele se chamava Josias. Como o seu pai.
– Você acha que somos parentes?
– Primos. Mas preciso confirmar.

– Nós vamos fazer aquele exame que falam na TV?

– DNA? Não. Mas eu vou continuar com o meu plano, quando encontrei você na estrada, estava indo para o Rio de Janeiro, mais especificamente, no orfanato em que ele ficou.

– Irado. E o que vai acontecer se eu não for seu primo? Você vai me correr?
– Não, não vou. – afirmou, com convicção.


João limpou a sujeira que Doca havia feito. Ajeitou a cama para o menino dormir e repensou seus planos.

Na manhã seguinte, João reservou para a próxima semana passagens de ida e volta para o Rio de Janeiro. Iria esperar Doca melhorar, já que ele não podia ficar sozinho. Foram dias diferentes na vida de João. Foi ao cinema, comeu hambúrguer e ouviu histórias sobre o morro Porto Seco.
– Você não tinha medo?

– Quando a minha mãe estava viva, não. Bagão nunca havia se metido comigo, pois sabia que se tocasse em mim, ela abriria a boca. – Diante do olhar curioso de João, Doca explicou. – Meu pai contou todos os podres do Bagão para a minha mãe, como garantia de proteção. Ele era o único que sabia que o cara era um baita de um veado. Mas para chefão do tráfico, não caia bem.

– Mas quando sua mãe morreu...

– Ele achou que poderia se aproveitar de mim. Sua grande vingança. Mas ele se ferrou, pois agora ele não pega mais ninguém, nem homem ou mulher.
– Vou me lembrar disso.

– Não sou violento. Foi pra me defender.

– Não estou condenando, Doca. Muito pelo contrário – e abraçando o menino pela primeira vez – tenho orgulho de você. Mas agora esqueça essa história. Quero que você me dê o nome da sua escola. Vou pegar os papéis para você estudar aqui em São Paulo.

– Eu vou ficar aqui?

– Vai. Nunca mais você vai ter que se defender dos Bagãos da vida. - João não sabia a razão de estar fazendo aquela promessa. Talvez fosse a pedra, ou uma estranha certeza de que Doca era seu primo, ou quem sabe o simples desejo de não querer ficar sozinho.

– Gostou do nosso domingo?

– Muito legal aquele parque, João – olhou para o braço – quando eu estiver totalmente recuperado, quero voltar lá.

– Combinado. Agora tenho algo sério pra dizer.

– O que eu fiz?

– Você não fez nada. É que amanhã estou indo para o Rio de Janeiro. Vou pegar um avião cedo e a noite estou de volta.

– Vai ver se meu pai era o seu tio mesmo?
– Sim, e vou buscar os papéis para a tua transferência, assim podemos te matricular em uma escola aqui em São Paulo.

– E se eu não for seu primo?
– Você é.

– Como você sabe?

– Não sei. Mas isso não importa agora. Quero que você preste atenção: como você viu, ontem compramos várias besteiras no mercado, não é para você comer tudo.

– Sim, senhor.

– Vou deixar marcado na portaria para trazerem o seu café, almoço e lanche. E vou pedir para a Teresa trazer. Então, você só pode abrir a porta para a Teresa, certo?

– Certo.

– Então, não abra a porta para nenhum estranho. Nem saia do quarto. Combinado?

– Combinado.


O sol não havia nascido quando João levantou. Tomou um rápido café, pegou uma pequena bolsa e observou se Doca ainda dormia. O táxi o esperava na frente do Flat e João chegou exatamente uma hora antes do vôo no aeroporto.

Fazia anos que não ia ao Rio de Janeiro, a visão pela pequena janela despertou o desejo de tomar um banho de mar. Mas não tinha tempo pra isso. Pela primeira vez em sua vida, tinha alguém que dependia e esperava por ele.

Ouviu as histórias do taxista com impaciência. Nem o calçadão de Copacapana, ou a visão ao longe do Pão de Açúcar, atraiam a sua atenção. Ao identificar o local que buscava, sentiu a adrenalina correr pelo seu corpo. Parte da sua história estava ali. Pagou o motorista e se dirigiu rapidamente ao portão de entrada. Quando passou pela porta do orfanato, escutou o grito das crianças e viu uma irmã carmelita brincando com elas. Chegou até a recepção, onde uma senhora o atendeu.

– Bom dia. No que posso ajuda-lo?

– Bom dia. Estou procurando informações sobre um homem que passou parte da infância aqui. Seu nome é Josias.

– Josias do que?

– Apenas Josias. Ele não tinha registro nem sobrenome.
– Temos dois Josias aqui, qual a idade dele?

– Ele não está aqui. Inclusive já morreu.

– O senhor é louco?

– Não. Estou procurando informações sobre um tio meu. Seu nome era Josias e morou aqui durante um tempo.

– É complicado ajudar só com essas informações.
– Ele se tornou traficante no morro do Porto Seco.
– Você está falando do Josias traficante?
– Sim.

– Então você é jornalista?

– Não. Acho que sou sobrinho dele.

– Como assim, acha que é sobrinho dele? Josias não tinha ninguém, nem sobrenome.
– Vocês não sabem o nome da mãe dele?

– Não. O passado de Josias é desconhecido. Mas você é realmente parente dele?

– Conforme uma investigação de uma agência particular, tudo indica que sim.

– Bom, tanta gente já olhou a ficha dele, que mais um ou menos um não vai fazer diferença. Sabe, ele já havia sido esquecido por aqui, eu mesma, nem sabia da existência dele. Até matarem ele, dez anos atrás. Alguém disse que ele havia sido criado aqui e tudo o que é jornalista resolveu pesquisar a vida desse “ilustre desconhecido”.

A mulher foi até um armário e retirou uma pasta de papelão, num azul desbotado. Comum gesto, pediu que João a seguisse. Entraram em uma sala com duas mesas de madeira, cada uma com quatro cadeiras.

– Pode sentar em qualquer uma delas e olhar a vontade. – Disse enquanto entregava a pasta para João - Uma das irmãs colocou os recordes das notícias que saíram sobre o Josias. Quando terminar, basta me entregar ali no balcão. Ah, e não esqueça de colocar o seu nome completo na folha que está grudada na capa, é para o nosso controle.

João concordou com a cabeça, quando a mulher virou as costas, começou a manusear os documentos. Josias foi levado ao orfanato aos oito anos, por uma mulher que vivia no morro da Mangueira. Conforme essa mulher, uma vizinha havia lhe dado à criança ha dois anos atrás, quando estava morrendo. Não sabia o nome da mãe, apenas que a sua forma de falar não era carioca, e pelas roupas, era uma mulher da vida.

Josias viveu no orfanato até os dez anos, quando fugiu. Conforme os recortes de jornal, desde essa época ele vivia no Porto Seco. Menino revoltado, conquistou a confiança de um dos maiores ladrões da época. O aprendiz se tornou mestre, conseqüentemente chefe do morro, e inevitavelmente, do tráfico de drogas. Morreu tarde, para os padrões da bandidagem. Alguns apontavam Bagão como autor, outros diziam ser um traficante do morro vizinho.

Nenhuma notícia sobre a mãe. Seria ele realmente filho de Irina? Continuou a mexer nos papéis e encontrou um envelope, abriu e encontrou uma pequena carta:


“Meu menino
Sei que nunca irá me perdoar. Eu também não. Lhe desejo sorte.”

João olhou para os lados, ninguém o observava. Disfarçadamente, o guardou no bolso interno do casaco. Não encontrou mais nenhum papel interessante. Guardou tudo na pasta e começou a escrever o nome na folha de controle. Havia uns quinze nomes, alguns, de jornalistas que hoje eram famosos. Mas foi o primeiro nome que lhe chamou a atenção: Odete Eztufp, data da visita: 04 de junho de 1968.

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