domingo, 3 de outubro de 2010

Capítulo Nove

Porto Alegre, Centro

Caminhado lentamente, devido ao grande peso de suas malas, Lúcia chegou até o ônibus com destino a Curitiba. Suas colegas haviam viajado uma semana antes, para arrumar um apartamento e conhecer a cidade. Lúcia ficou cuidando da burocracia legal que envolvia a sua partida. Fez a doação da sua parte do apartamento para a mãe e para o irmão. E agora estava lá, sozinha, como sempre foi a sua vida inteira.

Entrou no ônibus e se dirigiu a poltrona vinte e sete. Pela janela, viu famílias se despedirem. Por um momento, quase chorou, mas a sensação de alívio era mais forte. Estava livre, finalmente, e a estranha certeza de que nunca mais veria seus parentes a deixou feliz.

Sua lembrança mais remota era o seu avô Sílvio a ignorando, sua mãe se queixando por ela ser uma menina e o pai desligado, lendo jornal. Cresceu sentindo inveja de suas colegas, que tinham pais amorosos e dedicados. Elas ocupavam o primeiro lugar, Lúcia, mesmo sendo filha única, o último. Quando o seu avô morreu, não derramou nenhuma lágrima. Nunca o conhecera de verdade. Sabia apenas que era um homem amargo, que às vezes lamentava a morte da esposa, outras vezes a amaldiçoava.

Quando completou doze anos, descobriu que seus pais podiam ser diferentes. Ricardo nasceu e foi tratado como um príncipe. Se para Lúcia não havia dinheiro para comprar um bom tênis, Ricardo podia ir nas lojas e escolher o que quisesse.

Ricardo levou seu pai as dívidas e, conseqüentemente, a procurar mais trabalho. Foi depois de trabalhar o dia inteiro em uma obra sentando tijolo, que Pedro foi trabalhar como auxiliar de padeiro. Com muito sono, ligou o forno sem tomar os devidos cuidados, e morreu na explosão que provocou. Não receberam um centavo pelo seu falecimento e a seguradora quase os cobrou pela destruição.

Tempos difíceis para uma moça de quinze anos. Arrumou o seu primeiro emprego, como vendedora de uma loja de bijuteria perto de casa. Pela primeira vez, desejou fugir de tudo. Mas seu senso de responsabilidade sempre foi mais forte.

E agora, olhando a estrada, sentia pela segunda vez a velha revolta. Mesmo ajudando em casa, sua mãe nunca lhe respeitou. Sempre lhe impôs as suas vontades, mesmo que isso desagradasse ou magoasse Lúcia. Aos poucos, foram parando de se falar, e apenas o necessário era pronunciado.

Por mais que doesse, sabia que Joana só não havia lhe corrido de casa porque era ela quem pagava a maioria das contas. Lembrou do rosto da mãe ao dar a notícia. Um misto de alívio e desespero. Ao saber que Lúcia continuaria a mandar dinheiro, só o alívio permaneceu.

Seu irmão Ricardo recebeu a novidade de forma indiferente. Sabia que, por ele, a mãe até trabalharia. Ele era o mundo dela, Lúcia, uma fonte de renda.

A lua refletiu no mar e Lúcia deu um sorriso triste. Nunca mais os veria. Mas não era isso que fazia as lágrimas escorrer em seu rosto, era a certeza de que sempre seria sozinha.

Quando o ônibus passava pela entrada de Torres, Lúcia dormiu.


– Você pensou que a vida era fácil? – perguntou a mulher sentada ao seu lado, com longos cabelos ruivos e olhos verdes.

– Hein?! Assustou-se Lúcia. Franzindo as finas sobrancelhas, olhou para aquela que parecia ser uma versão bonita de sua mãe. Reparou no vestido azul e na manga que não escondia no braço esquerdo um sinal igual ao seu.

– Eu sei o que você está sentindo – disse a mulher ignorando a sua surpresa – mas eu aprendi a conviver com a solidão. Somos pessoas destinadas a nunca seremos amadas.

– Você fala como se me conhecesse muito bem.

– E eu conheço, Lúcia. Você é como eu. Mas em breve irá descobrir que ninguém vale as suas lágrimas, porque ninguém vai orar por sua alma.

A estranha lhe tocou, e sua mão era extremamente gelada.


Lúcia acordou num pulo. O céu estava clareando e era possível ver que estavam em uma área urbana. Ao colocar as mãos no rosto, percebeu que havia chorado durante o sono. Lembrou da mulher e sua pele ficou arrepiada.

“É apenas o seu inconsciente dizendo para você parar de chorar por quem não te dá valor” pensou. E ao observar as ruas limpas, se deu conta que havia chegado ao seu destino. “De agora em diante, surge uma nova Lúcia. O passado ficou para trás, assim como os laços de sangue, os amores que não deram certos e todas as minhas causas perdidas.


Eram seis da manhã de sábado. Ao entrar na rodoviária viu as duas amigas sentadas. Agora tinha quem a esperasse. A nova Lúcia pegou um espelho na bolsa, ajeitou os cabelos castanhos, passou um lenço umedecido pela pele branca e passou um batom rosa nos lábios finos. Antes de fechar a bolsa, viu a pedra em formato de triângulo, passou os dedos de leve e sorriu. “Meu amuleto. As coisas já estão começando a melhorar. Só falta você me arrumar um homem bem gostoso”.

O ônibus parou e ela levantou, ajeitou os ombros e desceu os degraus cheia de classe. As amigas se olharam surpresas e logo em seguida correram para abraça-la.

– Estamos morando aqui perto. – disse Clarissa – que pegava a mala menor.

– Nossa... você não tinha tão pouca coisa como dizia – brincou Soraya, que puxava a mala maior.
– Gurias, larguem isso. Eu levo.

– De jeito nenhum. Você viajou a noite inteira. Eu e Clarissa sabemos como é cansativo.

– E vamos pegar um táxi. A saída é bem perto.


Soraya e Clarissa colocaram Lúcia a par de todos os eventos. O motorista do táxi, um senhor simpático, as ajudou com as malas e sugeriu alguns lugares. Mas não conversaram muito, em cinco minutos estavam na frente de um condomínio com três edifícios.

– Ilhas Gregas? – observou Lúcia.

– Agora somos deusas – respondeu Clarissa.

– Bom dia seu Maciel – Soraya se dirigiu ao porteiro – essa é Lúcia, a amiga que comentamos.

– Bem-vinda Dona Lúcia.

– Obrigada. Mas dispenso o dona.

– É nesse primeiro aqui, o Santorini. O nosso apartamento é no décimo andar e temos uma vista maravilhosa para o Jardim Botânico.

Ao entrar no apartamento, Lúcia achou que estava sonhando ainda. O sofá verde, a mesa de madeira escura com tampão de vidro, a cozinha branca.

– Vocês já mobiliaram?

– Somos muito eficientes. – comentou Soraya.

– Realmente somos – concordou Clarissa – mas o alugamos mobiliado. O preço estava ótimo e ele tem três quartos. Estava destinado a nós.

– Com certeza. – Lúcia concordou encantada.

– Venha. O seu quarto é o azul.

O azul era do mesmo tom do vestido da mulher que havia aparecido em seu sonho. Lúcia sacudiu a cabeça, não entendia a razão de não esquece-lo.
– Você não gostou? – perguntou Clarissa.

– Não gostei? Eu amei.

– Seja sincera. Vimos você sacudir a cabeça, não é Clarissa?
Clarissa concordou com um gesto de cabeça, olhando preocupada para Lúcia.
– Não gurias. Apenas me lembrei de um sonho que tive no ônibus. O quarto é maravilhoso. Nunca imaginei ter um assim.

Dormiram o resto da manhã e aproveitando que à tarde daquele sábado estava ensolarada, foram ao jardim botânico. Lúcia se impressionou com a grande estufa de vidro, Clarissa tirava foto delas junto a todas as flores e Soraya as fez caminhar por todas as trilhas. Retornaram exaustas. Clarissa foi direto para a cozinha.

– Gurias. Não temos pão.

– Hora do sorteio. – comentou Soraya que escrevia em três papéis. – Quem pegar o que tiver a palavra “Padaria” é a encarregada de buscar os pães.

Cada uma pegou um, Lúcia abriu o seu e se descobriu ganhadora da missão.

- Ok, onde fica a padaria?

– Aqui na frente. É só atravessar a rua. – Clarissa indicou.

Lúcia chamou o elevador, quando chegou, tinha uma simpática senhora com cabelos que pareciam algodão doce. Seu vestido lilás era um tanto chamativo, mas o sorriso que ela lhe deu, a tornava irresistível.

– Boa noite. – disse Lúcia.

– Boa noite, Lúcia. Finalmente veio de encontro ao seu destino?

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