domingo, 12 de dezembro de 2010

Capítulo Dezenove

São Paulo, Morumbi

João estava cansado. Havia andando de um lado para o outro no Rio de Janeiro. Tinha quase certeza de que Josias era realmente o seu tio. Estava com os papéis de transferência para o colégio de Doca. A única coisa que havia ficado pendente era Odete Eztufp. Um nome que estava fora da lista telefônica carioca.
Foi com pânico que viu Doca de olhos fechados, sentado de forma ereta e com os músculos duros como pedra. O grito que se seguiu havia sido de puro medo. O mesmo sentimento que experimentava agora, ao ver as duas pedras grudadas, como se nunca tivessem sido duas.
– Não tem marca nenhuma. – comentou em voz alta.
– Ela as grudou. – Doca murmurou.
– Ela? Ela quem? – João se surpreendeu – Quem esteve aqui, Doca?
– Ninguém. Eu que não estava aqui. Eu estava em outro lugar, numa sala grande, antiga, cheia de fotografias. – Doca olhou para os machucados no braço – Se não fosse o gato, ela teria me matado.
– Doca. Não estou entendendo. Você saiu do flat sozinho?
– Eu não sai. Teresa pode confirmar. Foi através de um sonho. Como um filme que assisti, que o assassino pega as pessoas enquanto elas dormem.
– Foi ela quem te machucou?
– Não. Foi o gato. Quando ela ia me matar, ele saltou. Mas ele usou o meu braço como apoio, e as unhas dele me machucaram.
Se não fosse a pedra, João iria achar que Doca estava mentindo. Mas a evidência estava ali, em suas mãos. Que engraçado. Durante anos sua mãe e sua ex-mulher sonharam com o seu amadurecimento. E esse só chegou com uma sequência de estranhas coincidências.

Doca levantou da cadeira e começou a caminhar pela sala, sentia-se estranho. O coração estava apertado no peito, as pernas tremiam e a cabeça parecia oca. Tinha medo de voltar para aquela sala, e com isso foi até a janela.
A janela do flat tinha como vista outros prédios tão alto quanto o que estavam. Isso lhe dava certeza de que não estava na casa - ele sabia que era uma casa - pois lá, não viu janelas ou qualquer paisagem, apenas pesadas cortinas que davam um ar sombrio.
Ao virar, deparou-se com João lhe observando, seu olhar refletia preocupação. Então lembrou que ele estava no Rio, procurando a ligação dos dois.
– Você descobriu alguma coisa no Rio?
– Não muita coisa. Fui no orfanato que o seu pai morou, mas não existe nada sobre a mãe biológica. Ele passou de mão em mão, até fugir do orfanato e parar na favela em que você nasceu.
– Então você ainda não sabe se somos realmente primos?
– Tenho quase certeza de que você é meu primo. Apesar de não ter evidências, as informações batem com as a agência de detetives.
– E o que isso quer dizer?
– Que a agência fez uma investigação com informações mais sólidas. Minha mãe conhecia os diários de Irina, minha avó. Então, ao contrário de mim, tinha um ponto de partida. – João mexeu em uma pasta – Aqui estão. Eu trouxe os papéis para você estudar aqui em São Paulo.
– Eu vou voltar a estudar?
– Vai. Mas sinto dizer que esse ano você perdeu. Precisamos achar a terceira parte da família, e por consequência, a peça que completa esse quebra-cabeça – olhou para a pedra que ainda estava em sua mão – e uma tal de Odete.
– Odete?
– Sim. O nome dela constava numa lista de pessoas que buscaram informações sobre o seu pai no orfanato.
– Existem muitas pessoas?
– Muitos jornalistas foram até lá, quando seu pai morreu.
– Imagino. Mas por que você acha que ela é diferente?
– Por que ela fez a pesquisa em 1968.
– Nossa. Então ela deve saber toda história do meu pai.
– Sim. Por isso precisamos conversar com ela primeiro, e depois, vamos atrás da última peça.
– Do outro triângulo. – Doca observou o olhar surpreso de João – Olhe. É um triângulo que a completa.
– Sim. Você tem razão.
– Estou ansioso, mas ao mesmo tempo com medo. O que vai ocorrer quando acharmos a peça que completa o quebra-cabeça?
– Não sei, Doca. Não tenho a mínima idéia.
– Sei que ela vai aparecer.
– Ela quem?
– A bruxa. Ela irá unificar a última peça. Mas não quero ficar sozinho com ela.
– Você não vai mais ficar sozinho perto dessas pedras, Doca. E tenho a impressão que isso deve evitar de você encontra-la novamente.
Doca deu um suspiro. Não era covarde. Mas também não era burro de querer encontrar uma criatura que o fazia mudar de lugar num piscar de olhos. João começou organizar os papéis que estavam em sua pasta, o que fez Doca lembrar da pessoa que poderia ser a chave para o passado do seu pai.
– Você tem o sobrenome dessa Odete? Podemos procurar pela internet.
– Podemos sim. Mas antes vamos cuidar do seu braço.
Doca resmungou bastante enquanto João limpava seu braço. Ligou para uma farmácia e pediu uma pomada. Não acreditava que um gato fantasma pudesse causar alguma infecção, mas era bom não se arriscar.
– Como era esse gato?
– Igual ao da rodovia. – João parou de passar a pomada e o olhou – Quando você quase me atropelou, lembra? Tinha um gato na rodovia. Era igual aquele. Só que esse falava e tinha uma voz de mulher.
– Uma gata?
– É. – Doca retribuiu o sorriso.
– Naquela noite cheguei a procurar o gato. – João fechava a pomada e guardava tudo em uma pequena bolsa – Achei que tinha atropelado o bichano também. Mas ele sumiu, achei que tinha se escondido no meio do mato.
– Eu sempre achei que ele tinha me salvo. Foi por causa dele que me mexi e fui para o acostamento.
– Quer dizer que, no lugar de um anjo da guarda você tem um gato da guarda?
– Deve ser. Vamos procurar a Odete?

Entraram em vários sites, depois de duas horas sentados na frente do computador, encontraram, na lista telefônica on-line de Curitiba, Odete Eztufp.
– Tem até o endereço! – Doca apontou para a tela. – Rua, bairro, número...
– É o milagre da Internet.
– E agora?
– Agora? Agora nós vamos fazer as malas, Doca. Iremos vamos fazer uma visita a Curitiba. – João declarou.

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