“Que calor”, foi o meu primeiro
pensamento antes de abrir os olhos. Uma estranha claridade iluminava o ônibus.
Olhei pela janela: a estrada era de chão batido e levantava uma estranha poeira
avermelhada. Mas, como isso era possível? Era uma viagem de quarenta minutos do
trabalho até em casa. Deveria ser noite ainda.
A mulher ao meu lado me olhava
assustada. “Aonde foram os outros?”, perguntou num sussurro. Levantei a cabeça.
Os estudantes que sentavam na parte da frente haviam sumido. Eles me acordavam.
Sempre. Meus alunos sabiam do acidente que havia levado o meu marido e o meu
filho. Eu era a motorista. Nunca mais consegui dirigir. Nem me manter acordada
dentro de um veículo.
“A porta de acesso ao motorista
está emperrada”, informou o ocupante mais à frente. “Avisa que temos uma pessoa
passando mal”, exclamou outro. Um rapaz encontrava-se desmaiado. Seu corpo dava
pulos, como se algo o puxasse para cima. “O motorista disse que já vamos
parar”, respondeu o primeiro.
Fiz uma contagem. Dos vinte
passageiros, apenas oito estavam ali, mais o motorista e o seu acompanhante.
“Para onde estamos indo?”. A moça ao meu lado me respondeu: “Parece que estamos
indo para a aldeia onde mora a minha avó...”
O ônibus parou. Estávamos no meio
de uma aldeia de colonos. “O motorista disse que há um pequeno armazém aqui.
Podemos tomar água e procurar algo para o nosso amigo”, disse um senhor
apontando para o rapaz desmaiado, cujo corpo ainda se sacudia.
Desci. Sentia muita sede. Muito
calor. Como se estivesse pegando fogo. Atrás de um balcão de madeira bruta um
rapaz nos atendeu. Nos entregou seis garrafas de água. Pensei em corrigi-lo,
mas a minha colega de poltrona não estava lá. Conforme bebia, senti o meu corpo
esfriar, ficando apenas a sensação inconveniente da roupa grudando no corpo.
Uma voz que não me pareceu
estranha nos chamou. “É o motorista”, exclamou uma moça pequena que, junto com
o marido, sempre pegava o ônibus na sexta. Por um momento achei que a voz fosse
de outra pessoa... bobagem minha.
Entramos, e a minha colega havia
sumido. O ônibus arrancou e eu gritei “Espera, ainda falta uma pessoa”. “Não,
minha cara”, respondeu um senhor, “olhe pela janela, ela chegou ao seu destino”.
Ao olhar vi a moça abraçada a uma senhora. Ela chorava muito e beijava o rosto
enrugado como se não a encontrasse há muito tempo.
“Hei!”, exclamou outro
passageiro, “o rapaz desmaiado sumiu”. Naquele momento éramos seis - eu, um
casal, um rapaz que nunca tirava o boné, um senhor idoso e uma outra
professora, que eu conhecia só de vista.
“Olhem pela janela”, disse a
professora, “a paisagem está mudando”. Corremos para as janelas, entrávamos num
túnel verde, muitas árvores e flores. O frio começou a tomar conta do meu
corpo. Senti até a alma gelar.
Do nada o ônibus parou. A porta
se abriu e nela todos viram uma trilha que parecia levar a uma casa amarela,
com uma cerca marrom. O casal nos pediu licença. Chorando tanto quanto a moça
abraçada à senhora, eles desceram e seguiram a trilha. A porta se fechou, e eu
corri de janela em janela até perdê-los de vista.
As árvores foram substituídas por
pastos. Vacas caminhavam lentamente e cavalos corriam de um lado para o outro.
O ônibus freou de surpresa e a porta se abriu. Um homem jovem, com um chapéu de
palha, apareceu na porta. “Venha, meu filho” disse estendendo a mão para o
idoso. O senhor ajustou a bainha da calça e se levantou lentamente. Desceu as
escadas e, somente após um suspiro, colocou sua mão sobre a outra, estendida.
Os dois se abraçaram e a porta se fechou. Olhamos pela janela dos fundos e
vimos apenas o homem e uma criança caminhando. A bainha da calça do menino
havia caído. Enquanto ele se abaixava para arrumá-la o homem tirava o chapéu de
palha e colocava na cabeça do menino.
“Que loucura”, murmurava o rapaz
mexendo freneticamente no seu boné. Quando nos olhou, parecia estar vendo
através de nós. Com desespero, ele foi até a alavanca de emergência e soltou
uma janela. Quando o vidro caiu, ele se atirou. Corremos em direção ao vão da
janela. Não havia mais pastos e sim um grande rio. Estávamos atravessando uma
ponte. Ele havia desaparecido no meio das águas. Só o boné havia ficado
visível.
A professora se virou pra mim e
me abraçou. Com a voz embargada me disse “Boa sorte no seu novo caminho. Você
irá dirigir por ele”. Não entendi suas palavras. Mas não houve tempo de
perguntar. O ônibus parou e a porta novamente se abriu. Ela desceu em um
parquinho. Com um sorriso no rosto, virou-se e me abanou. Antes da porta se
fechar, pude ver cinco crianças a abraçarem. Algumas parecidas com ela. Como
podia ser? Todos sabiam que ela não conseguia engravidar. Depois do quinto
aborto havia desistido de ter filhos.
Nesse momento tudo clareou. O
ônibus agora estava passando por uma praia. “Pare” gritei. O ônibus parou, mas
a porta não se abriu. Não sabia o que estava acontecendo. Tinha uma estranha
certeza de que eles estavam ali.
A porta do motorista se abriu, e
a voz que tanto amei durante a vida inteira debochou: “Eu disse para eles que
você seria a última a entender”, logo em seguida um pequeno foguete correu em
minha direção, “Mamãe, mamãe, você vai ficar com a gente agora?”. “Vou”, foi a
resposta natural que surgiu na minha boca após sentir aqueles pequenos braços
ao redor do meu pescoço.
A dúvida ainda me assolava. Com a criança em meus braços
o encarei, como quem faz uma pergunta. “Um caminhão bateu na traseira de vocês.
Os estudantes e o rapaz desmaiado foram retirados vivos, mas os outros não
resistiram à explosão”.
Saí do ônibus de mãos dadas com o
meu marido e com o meu filho. Caminhando em direção ao mar e observando o
horizonte. Eles me encaminharam até um carro, me deixando o banco do motorista.
Nesse momento, entendi que a professora tinha razão.
* Este conto fez parte do livro Antológicos, da turma de alunos do curos Formação de Escritores da Unisinos.
** Imagem retirada do site www.autoviacoes.com.br
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