sexta-feira, 15 de março de 2013

Itinerário



“Que calor”, foi o meu primeiro pensamento antes de abrir os olhos. Uma estranha claridade iluminava o ônibus. Olhei pela janela: a estrada era de chão batido e levantava uma estranha poeira avermelhada. Mas, como isso era possível? Era uma viagem de quarenta minutos do trabalho até em casa. Deveria ser noite ainda.

A mulher ao meu lado me olhava assustada. “Aonde foram os outros?”, perguntou num sussurro. Levantei a cabeça. Os estudantes que sentavam na parte da frente haviam sumido. Eles me acordavam. Sempre. Meus alunos sabiam do acidente que havia levado o meu marido e o meu filho. Eu era a motorista. Nunca mais consegui dirigir. Nem me manter acordada dentro de um veículo.

“A porta de acesso ao motorista está emperrada”, informou o ocupante mais à frente. “Avisa que temos uma pessoa passando mal”, exclamou outro. Um rapaz encontrava-se desmaiado. Seu corpo dava pulos, como se algo o puxasse para cima. “O motorista disse que já vamos parar”, respondeu o primeiro.

Fiz uma contagem. Dos vinte passageiros, apenas oito estavam ali, mais o motorista e o seu acompanhante. “Para onde estamos indo?”. A moça ao meu lado me respondeu: “Parece que estamos indo para a aldeia onde mora a minha avó...”

O ônibus parou. Estávamos no meio de uma aldeia de colonos. “O motorista disse que há um pequeno armazém aqui. Podemos tomar água e procurar algo para o nosso amigo”, disse um senhor apontando para o rapaz desmaiado, cujo corpo ainda se sacudia.

Desci. Sentia muita sede. Muito calor. Como se estivesse pegando fogo. Atrás de um balcão de madeira bruta um rapaz nos atendeu. Nos entregou seis garrafas de água. Pensei em corrigi-lo, mas a minha colega de poltrona não estava lá. Conforme bebia, senti o meu corpo esfriar, ficando apenas a sensação inconveniente da roupa grudando no corpo.

Uma voz que não me pareceu estranha nos chamou. “É o motorista”, exclamou uma moça pequena que, junto com o marido, sempre pegava o ônibus na sexta. Por um momento achei que a voz fosse de outra pessoa... bobagem minha.

Entramos, e a minha colega havia sumido. O ônibus arrancou e eu gritei “Espera, ainda falta uma pessoa”. “Não, minha cara”, respondeu um senhor, “olhe pela janela, ela chegou ao seu destino”. Ao olhar vi a moça abraçada a uma senhora. Ela chorava muito e beijava o rosto enrugado como se não a encontrasse há muito tempo.

“Hei!”, exclamou outro passageiro, “o rapaz desmaiado sumiu”. Naquele momento éramos seis - eu, um casal, um rapaz que nunca tirava o boné, um senhor idoso e uma outra professora, que eu conhecia só de vista.

“Olhem pela janela”, disse a professora, “a paisagem está mudando”. Corremos para as janelas, entrávamos num túnel verde, muitas árvores e flores. O frio começou a tomar conta do meu corpo. Senti até a alma gelar.
Do nada o ônibus parou. A porta se abriu e nela todos viram uma trilha que parecia levar a uma casa amarela, com uma cerca marrom. O casal nos pediu licença. Chorando tanto quanto a moça abraçada à senhora, eles desceram e seguiram a trilha. A porta se fechou, e eu corri de janela em janela até perdê-los de vista.

As árvores foram substituídas por pastos. Vacas caminhavam lentamente e cavalos corriam de um lado para o outro. O ônibus freou de surpresa e a porta se abriu. Um homem jovem, com um chapéu de palha, apareceu na porta. “Venha, meu filho” disse estendendo a mão para o idoso. O senhor ajustou a bainha da calça e se levantou lentamente. Desceu as escadas e, somente após um suspiro, colocou sua mão sobre a outra, estendida. Os dois se abraçaram e a porta se fechou. Olhamos pela janela dos fundos e vimos apenas o homem e uma criança caminhando. A bainha da calça do menino havia caído. Enquanto ele se abaixava para arrumá-la o homem tirava o chapéu de palha e colocava na cabeça do menino.

“Que loucura”, murmurava o rapaz mexendo freneticamente no seu boné. Quando nos olhou, parecia estar vendo através de nós. Com desespero, ele foi até a alavanca de emergência e soltou uma janela. Quando o vidro caiu, ele se atirou. Corremos em direção ao vão da janela. Não havia mais pastos e sim um grande rio. Estávamos atravessando uma ponte. Ele havia desaparecido no meio das águas. Só o boné havia ficado visível.

A professora se virou pra mim e me abraçou. Com a voz embargada me disse “Boa sorte no seu novo caminho. Você irá dirigir por ele”. Não entendi suas palavras. Mas não houve tempo de perguntar. O ônibus parou e a porta novamente se abriu. Ela desceu em um parquinho. Com um sorriso no rosto, virou-se e me abanou. Antes da porta se fechar, pude ver cinco crianças a abraçarem. Algumas parecidas com ela. Como podia ser? Todos sabiam que ela não conseguia engravidar. Depois do quinto aborto havia desistido de ter filhos.

Nesse momento tudo clareou. O ônibus agora estava passando por uma praia. “Pare” gritei. O ônibus parou, mas a porta não se abriu. Não sabia o que estava acontecendo. Tinha uma estranha certeza de que eles estavam ali.

A porta do motorista se abriu, e a voz que tanto amei durante a vida inteira debochou: “Eu disse para eles que você seria a última a entender”, logo em seguida um pequeno foguete correu em minha direção, “Mamãe, mamãe, você vai ficar com a gente agora?”. “Vou”, foi a resposta natural que surgiu na minha boca após sentir aqueles pequenos braços ao redor do meu pescoço.

A dúvida ainda me assolava. Com a criança em meus braços o encarei, como quem faz uma pergunta. “Um caminhão bateu na traseira de vocês. Os estudantes e o rapaz desmaiado foram retirados vivos, mas os outros não resistiram à explosão”.

Saí do ônibus de mãos dadas com o meu marido e com o meu filho. Caminhando em direção ao mar e observando o horizonte. Eles me encaminharam até um carro, me deixando o banco do motorista. Nesse momento, entendi que a professora tinha razão.

* Este conto fez parte do livro Antológicos, da turma de alunos do curos Formação de Escritores da Unisinos.
** Imagem retirada do site www.autoviacoes.com.br

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