domingo, 6 de fevereiro de 2011

Capítulo Vinte e Quatro

Curitiba, Cristo Rei

– Dona Odete? – João estava surpreso com o sorriso da senhora a sua frente, como se estivesse lhe esperando.
– Sou eu mesma. Mas pode me chamar de Odete, João. – viu um menino pequeno carregando uma mala. – E você, quem é?
– Eu sou o Doca.
– Ele é meu primo, Odete.
– O filho de Josias?
– Como à senhora sabe o nome do meu pai?
– O filho de Josias. Tenho a estranha impressão que a senhora já estava nos esperando...
– De certa forma, sim. Mas entrem. Vocês precisam conhecer uma pessoa.
João entrou no apartamento, seguido de Doca. No sofá, uma jovem de olhos puxados e mechas loiras pressionava a boca, transformando os lábios em uma linha fina. Na janela, uma morena baixinha parecia estar vendo um fantasma e uma outra com cabelos castanhos e olhos brilhantes caminhava em sua direção.
“Ela é simplesmente encantadora” João pensou enquanto levantava os ombros, melhorando a sua postura e preparando o seu melhor sorriso.
– Boa noite, senhoritas. Eu sou...
– O João. E esse é o Doca. – interrompeu a senhora enquanto fechava a porta – seus primos, Lúcia.
– Primos? – todos exclamaram.
– Sim Aqui estão... Lúcia neta de Sílvio, tio de João e Doca. Qual o seu nome, Doca?
– Eduardo.
– Bonito nome. Por que não o usa?
– Todo mundo usa apelido na favela. Ela é minha prima também?
– É.
– E a senhora conhecia o meu pai?
– De certa forma, sim. Mas vamos, sentem-se.
– Se vocês não se importam... eu tenho um compromisso.
– Claro, Clarissa. Vá.
– Eu também vou, Lúcia. Apensar de sermos uma família, acho que vocês devem ter muita coisa para conversarem.
– Não se preocupem, meninas. Não estou correndo perigo.

As duas saíram e aguardaram o elevador em silêncio. Apenas quando entraram no seu apartamento, Soraya deve coragem de falar.
– O que você acha?
– Não sei... é tudo muito estranho. Nada tem uma explicação lógica.
– Por que você não contou sobre a pedra?
– Por que eu peguei sem pedir. Com que cara eu ia dizer “Olha Lúcia, peguei a sua pedra para usar em um evento, mas derrubei ela em um lago e agora ela reapareceu no seu quarto?
– Você ia parecer louca.
– Mas uma coisa eu te digo... ao contrário do que a Lúcia acha, ela está correndo perigo sim. Aquela pedra é maldita e se eles tiverem outros pedaços, qualquer coisa pode acontecer.
– Então vamos rezar para que não aconteça.
– Vamos.
As duas se deram as mãos, e baixinho, começaram a rezar o Pai Nosso.

– Então você conhecia a minha avó? – João perguntou.
– Sim, trabalhei com Irina durante pouco tempo.
– Você era prostituta também?
– João! – Doca exclamou.
– Sim. Não fique assustado, Doca. Estamos entre amigos. Como você ficou sabendo?
– Minha mãe leu os diários de Irina, destruiu todos, mas algumas coisas ela colocou nos próprios diários. A vida de Irina, o filho abandonado, o sofrimento de Sílvio.
– Ela engravidou por acaso. Fazia poucos meses que estava na profissão, era inexperiente e não tomava todos os cuidados necessários. Foi escolhida por um cliente mais violento e acabou grávida de Josias.
– Mas isso não era razão para abandonar um filho. – Lúcia olhou para Doca, que ouvia tudo em silêncio.
– Não julgue, Lúcia. Irina era jovem, tinha perdido o marido, não tinha um centavo no bolso. Ela não tinha grandes escolhas.
– Tudo era contra ela. – João concluiu.
– Tudo. Ela apertou a barriga. Amarrava bem e a maioria dos homens achava apenas que ela estava mais gordinha. Foi quando conheceu um rapaz bem-sucedido, que depois de uma noite, ficou perdidamente apaixonado por ela.
– E ele não aceitou o meu pai? – a voz firme entrou em contraste com os olhos embaçados, indicando o desejo de chorar.
– O rapaz nunca ficou sabendo. Irina disse que ia encontrar uma prima e foi para o Rio de Janeiro. Lá ela deu a luz a um menino e deu para uma senhora, que estava no mesmo quarto de hospital, e que gritava em desespero por ter perdido o filho. – Odete levantou e abraçou Doca – Mas essa senhora morreu de câncer. O destino de Josias era ser jogado no mundo. E assim ele foi parar em um orfanato e depois, na favela.
– E Irina? – Lúcia perguntou
– Irina voltou para Porto Alegre e o rapaz a pediu em casamento.
– O rapaz era meu avô?
– Era. Tiveram dois filhos, Sílvio e Manoela. O resto, vocês sabem.
– E a pedra? - Doca levantou os olhos, observando Odete mais atentamente.
– Já que perguntou... vocês a trouxeram, João?
– Sim. – procurou o fecho e abriu a mala que estava nos seus pés. Dela tirou um objeto enrolado em um tecido marrom, que se revelou uma camisa.
– Ela é maior? – Lúcia arregalou os olhos.
– Estão grudadas. – Odete afirmou.
– Exatamente. Você a conhece?
– Nunca tinha visto, mas Irina falava muito dela. A pedra maldita. Você também me falou sobre ela, quando sua avó morreu.
– Já nos conhecíamos? Interessante. – João se levantou e foi até uma mesa redonda, colocando a pedra na superfície de vidro. Mexendo no arranjo que ali estava, ficou olhando para o nada. – Eu era pequeno, mas lembro de minha mãe ter achado uma parte do triângulo no quarto de Sílvio e de sua mãe – olhou para Lúcia – minha avó viu e arrancou da mão dela. Saiu em desespero de casa e caiu na escada. Quebrou o pescoço.
– Que horror. – Doca se aconchegou mais nos braços de Odete. – Você também tem a pedra?
– Tenho. – Lúcia a tirou do bolso do casaco.
– Cuidado. A bruxa pode pegar. – o menino sussurrou.
– Que bruxa?
– Não sabemos. Mas algo grudou as pedras.
– Eram duas? – Odete soltou Doca e se levantou.
– Eram.
– Qual o próximo passo? Odete olhou para Lúcia que imediatamente descobriu sua resposta – Vamos aproxima-las.
– Espere. Vamos montar o ambiente. – Caminhando ligeiro, Odete sumiu pelo pequeno corredor. Quando voltou, trazia os braços cheios de coisas. Colocou tudo em cima da mesa. Retirou o arranjo e abriu o primeiro saquinho e fez um circulo branco.
– O que é? – Doca cochichou no ouvido de João.
– Acho que sal.
Fora do círculo, acendeu sete pequenas e coloridas velas. Beijou um medalhão e os encarou.
– Lúcia, traga a sua pedra. – Lúcia se aproximou e colocou o seu triângulo perto da peça maior. – Fique aqui. – Ordenou quando Lúcia começou a se afastar.
– Eu?
– Sim. Isso é uma briga de mulheres e você, como única representante, deve terminar.
Sem entender, Lúcia pegou as pedras e colocou dentro do círculo, conforme Odete indicou. Nesse momento, tudo em sua volta sumiu.
Estava em uma sala escura. Não havia nenhum reflexo de luz ou sinal de alguma janela. Sentiu algo passar rente as suas pernas. Levantou uma perna.
– Não se mova. – disse uma voz.
Um calafrio lhe percorreu o corpo. Cruzou os braços sobre o peito e foi surpreendida por um feixe amarelo e rosa. As pedras estavam no ar, se juntando. Olhos frios a encaravam. Ódio. Lúcia podia sentir o ódio profundo que lhe era dirigido e afligia sua alma, como se a apunhalasse. Sentiu um desejo de se atirar no chão, ficar na posição fetal, fechar os olhos e nunca mais acordar. Sem sentir, começou a se abaixar, para tornar realidade, o pensamento que se transformava em uma idéia fixa, quando ouviu um miado. O mesmo gato que a acordou no dia seguinte a pedra lhe encarava. Tinha olhos verdes.
Lúcia piscou, como se acordando. Ela já tinha visto aqueles olhos. A imagem de sua mãe surgiu em sua mente. Mas os olhos dela eram frios, desprovidos de sentimentos. Aqueles não. Eles tinham calor, um certo pavor, mas sem perder a força. Como a mulher do ônibus. Naquele encontro, ela não sabia, mas agora tinha a chave para se livrar da escuridão.
– Irina. – Balbuciou.
O choque foi intenso. João não conseguiu segurar Lúcia, cujo corpo tremia, como se entrasse em convulsão. Doca, encolhido em um canto da sala, tinha o olhar fixado nas três pedras grudadas no centro da mesa. Odete correu para Lúcia, que agora estava no chão.
João não entendia nada. No momento que Lúcia colocou as pedras na mesa, seus olhos viraram, ficando apenas um branco. Seu corpo primeiro tremeu e começou a cair. João tentou segura-la, mas quando as pedras ergueram-se sozinhas no ar e se juntaram, ele esqueceu momentaneamente da jovem, e quando percebeu, Lúcia havia sido jogada contra a parede.
Odete já estava ao lado de Lúcia, quando João conseguiu voltar a pensar. Foi até Doca e o pegou pela mão. Levando-o para junto de Lúcia, que continuava deitada, como se não conseguisse se mexer.
– Você está bem? – João pegou Lúcia pelos braços, levantando o seu tronco e encostando suas costas na parede.
– Estou. – Respondeu baixinho. Cruzando as pernas. - Nossa, que frio. – Começou a esfregar os braços.
– Você a viu?
– Sim, Doca. Eu a vi.
– O gato estava lá?
– Irina estava lá.

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